Dias atrás, preparando uma aula do Seminário 20 de Lacan, me vi dizendo uma frase que certa época povoou minha infância em Caldas Novas. Uma de minhas amiguinhas saiu com a brincadeira de “dicionário”. À queima-roupa, éramos conclamadas a dar uma definição de palavras corriqueiras.
Instalou-se uma angústia generalizada, porque descobrimos que não saía nada de nossas bocas. Os olhos viravam, mãos se esfregavam, pezinhos batiam no chão, risinhos sem graça e nada.
Perguntas do tipo “o que é derramar?” ficavam sem resposta. Imaginávamos o líquido caindo para fora de um recipiente, imaginávamos a sujeira, a imagem estava lá, mas a definição não saía.
Mas, com tudo isso, descobrimos algo bem importante: podemos saber o que algo é e ainda assim não saber explicá-lo. Mesmo coisas muito familiares e fáceis.
Talvez hoje possamos tirar lições mais úteis ainda: nem tudo precisa de explicação para existir nem para que possamos fazer algo com a tal coisa que não sabemos explicar, mas que sabemos o que é.
Isso quer dizer que podemos desbancar um verdadeiro vício que nos domina que é achar que conversar, “dialogar”, fazer uma “DR”, ou o contrário, quebrar o pau, brigar feio (ou bonito) são os únicos caminhos para se encaminhar um impasse. No século 21, temos muitos outros instrumentos para agir sem saber a razão daquilo, mas ainda assim achar saídas.
Vamos a um exemplo doméstico de uma mãe que chega para sua sessão de análise bufando de raiva da filha de 9 anos que está lhe tirando do sério.
A menina pede para ir a um determinado passeio com coleguinhas e a mãe – calmamente – argumenta que naquela semana já tinha tido passeio. A menina, aumentando o tom da voz, insiste que as outras mães deixaram suas filhas participarem.
A pobre e desconsolada mãe, já nos limites da paciência, anuncia a tão conhecida expressão: “Eu não sou as outras mães”. Tiro perdido. A menina continua, agora, com desespero e pressão ao máximo: ”Deixa, mãe! Deixa, mãe!” A mãe explode de raiva, se sentido desrespeitada, perde a paciência e grita. Sai da cena envergonhada, sentido que perdeu a parada quer a filha vá ou não ao tal passeio.
História bastante corriqueira, os pais de crianças e adolescentes bem sabem disso.
Diante de mim, a mãe desconsolada afirma que não dá conta de não entrar no jogo da filha.
Eu digo que não acredito que ela não possa ser mais esperta, competente e forte do que uma criança ou adolescente. “É só uma questão de se usar instrumentos eficazes”, eu digo, “Você está usando fósforo riscado, frases pasteurizadas que já perderam o efeito”.
Proponho à mãe perdida uma nova estratégia que eu chamo de “fazer-se de espelho”. Quando a menina começar com o seu teatrinho, à mãe caberia fazer a repetição minuciosa das palavras, tons de voz e trejeitos da garota.
Na semana seguinte, a mãe chega com um sorriso exultante e os olhos brilhantes: “Deu certo, deu certo! Parecia que nada mudaria aquele tipo de situação”.
No primeiro pedido que mereceria uma negação, tudo aconteceu como sempre. A menina expressou o novo pedido, a mãe respondeu calma e respeitosamente. Começou o segundo ato, que era onde a pequena roubava as forças da mãe.
A menina seguiu seu ritual subindo a tensão de nível e a mãe começou a imitá-la. A filha respondeu com uma expressão intrigada, do tipo: “O que está acontecendo por aqui?”
Voltou à carga e a mãe fez igualzinho. Aí foi a filha que se perdeu e começou, já em desespero, a pedir para a mãe parar. Saiu com o rabinho entre as pernas sabendo que foi desmascarada.
Cadê a mãe? Não havia mais mãe ali para ser manipulada. Ela era só um espelho e a filha pôde ver a si mesma no espelho-mãe.
Funcionou! Resolveu e não teve explicações (que já tinham passado da conta).
Falar, acredite, muitas vezes pode ser o maior atrapalho para algo mudar.
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Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 3 de março de 2016.