“Eu te amo” pode ser ruim?

Por Valéria Belém
Jornalista, escritora e psicanalista em formação

 

“Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto: dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.” João Guimarães Rosa

Faça o teste agora. Pense em algo como… “limão”. O que vem à sua mente? A fruta pode significar para você a lembrança de seu pai, que tinha uma chácara com pomar e lindos limões. Ou um picolé que você tomava ao sair da escola, no tiozinho da esquina – tem som de infância, portanto. Ou pode ainda ser uma sobremesa, recheado com doce de leite, de lamber os beiços. Gulodice pura. Ou seja, limão pode ser um monte de coisas que vão além da fruta de polpa suculenta. Então, podemos dizer que cada um tem o seu limão na cabeça.

E é bom a gente entender isso para termos encontros de mais qualidade na vida e também, quem sabe, podermos reconfigurar algumas palavras ou expressões em nosso dicionário pessoal. Havia um homem que na infância, ao ser punido ou chantageado pela mãe para fazer o que ela queria, ouvia sempre a frase: “Faço isso porque eu te amo!” Ao crescer, se uma mulher lhe dissesse tais palavras, já tinha garantido um desenrolar triste para a história do relacionamento. Ou seja, quem dizia “Eu te amo” imaginava expor o que de mais caro havia em seu íntimo, mas só o que o homem ouvia (e via em sua mente) era sofrimento, dor e manipulação. Um desencontro total.

O psicanalista francês Jacques Lacan viveu uma situação que nos faz entender como é possível modificar sentidos em nossa cadeia simbólica. Ele tratou de uma paciente que, tendo sobrevivido à segunda guerra, relata um sonho em que acorda às 5 da manhã e lembra que esse era justamente o horário em que a polícia secreta do regime nazista, a Gestapo, procurava judeus em suas casas. Ouvindo suas palavras, ele se levanta rapidamente da poltrona onde está sentado, se aproxima dela e faz um carinho em seu rosto. A paciente compreende: “Geste à peau! (Gesta pô)” (Um carinho na pele, traduzido do francês). Assim ela passou a carregar outro sentido interno para a palavra, ou seja, o gesto doce de Lacan em seu rosto.

É bom sabermos que existem caminhos que nos levam a um verdadeiro encontro com o outro por meio da linguagem. Para isso, precisamos entender que ele é tortuoso e surpreendente. Além de abrir os ouvidos, precisamos de um esforço a mais, o de escancarar a mente. No começo pode parecer um pouco estranho, mas tudo fica mais fácil quando nos desprendemos do senso comum – aquele que nos diz que um limão é sempre o mesmo para todos.

Ver e ouvir o outro a partir do que ele tem de único, de singular, nos leva a enxergar novos mundos e a melhorar relacionamentos. E para isso vamos nos falando por aqui.

Originalmente publicado no blog Mundo Psi, da Revista Zelo, em 24/08/2016

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