Sobre o sentimento de incompletude

Study of a Baby (Frederick Goodall, 1868) - www.metmuseum.org
Study of a Baby (Frederick Goodall, 1868) – www.metmuseum.org

Luciene Godoy //

Tenho me surpreendido com o susto das pessoas quando digo que todo ser humano nasce prematuro aos 9 meses, ou mais ou menos 40 semanas de gestação.

As pessoas da área das ciências biológicas, que bem sabem disso, geralmente afirmam: “Nossa, é mesmo! Por que a gente nunca pensa nesse detalhe?” O leigo, por outro lado, só acha mesmo estranho tal afirmação.

Em qualquer curso de antropologia, psicologia, biologia ou outro que aborda a teoria evolucionista, é informação básica o estudo sobre o advento da bipedia, ou seja, sobre como o homem começou a andar sobre dois membros.

A bipedia se produz entre 6 e 4 milhões de anos atrás e deflagra uma série de consequências a longo prazo: o uso das mãos, que criam utensílios que alteram o modo de sobrevivência da espécie humana; o crescimento do volume cerebral, que nos torna cada vez mais inteligentes e criativos…

Também se produz – fato da maior importância para a psicanálise – a perda do olfato como determinador do instinto que ordenava a reprodução pelo cio. Começamos a nos relacionarmos prioritariamente pela visão, que passa a comandar os processos sexuais e, portanto, de procriação.

O que não ouvimos falar muito é que, como consequência da assunção da posição erétil, a fêmea humana ficou com a pélvis mais estreitada e isso começou a provocar a morte da mãe e do bebê que nascia com a cabeça muito grande para uma pélvis cada vez mais estreita.

Temos, então, neste momento, uma modificação adaptativa para que a espécie humana não desapareça que é, veja só: o ser humano começou a nascer antes do tempo para que a mãe e o bebê não morressem no parto.

Podemos nos comparar a mamíferos mais conhecidos nossos como o bezerro e o cavalo, que, mal nascem – com dentes e tudo mais -, já estão de pé e rapidamente vão adquirindo uma certa independência. Já cachorrinhos e ratinhos nascem mais “fetalizados” e precisam de um ninho, que é o corpo da mãe, aquecendo-os e abrigando-os até um amadurecimento maior.

O ser humano está mais para o segundo time. Nascemos muito inacabados ainda e necessitamos de cuidados prolongados dos adultos até podermos ser considerados capazes de cuidar de nós mesmos.

Chamamos de neotenia esta condição de prematuridade prolongada do ser humano – assunto para outro artigo.

A prematuridade humana se expressa em termos da incompletude: o não acabamento e a funcionalidade precária de certos sistemas vitais. O sistema digestivo, por exemplo, só está funcional no terceiro mês pós -nascimento, e é por isso que as cólicas melhoram tanto a partir desse momento.

A visão só se torna apta a focar, distinguindo bem os objetos, aos seis meses de vida, o que provoca nos pais afirmativas de que antes o bebê ia com todo mundo e agora começa a “estranhar” as pessoas. É que ele passa a ver com clareza o que antes não era possível porque o olho ainda não funcionava normalmente.

Este não acabamento é verificado em quase tudo: no sistema muscular, no sistema respiratório e, acima de tudo, no sistema neurológico, que, por não termos as bainhas de mielina que recobrem os axônios dos neurônios, produz a sensação de um corpo despedaçado. Só conseguimos nos sentir aos pedaços, com o nosso corpo funcionando parcialmente como os das pessoas que têm distrofia muscular – elas perdem gradativamente o controle do próprio corpo porque suas fibras vão se “dismielinizando”.

Moral da história: a sensação de incompletude não é inventada. Nós nascemos incompletos mesmo.

A incompletude é característica dos “nascidos antes da hora”.

Que transformemos esta incompletude, de início biológica, em um fato emocional com suas dores e seus prazeres, ou que façamos disso poesia e muitas outras coisas – como a busca do encontro com o outro no amor -, é a nossa grande marca.

Haveria outras respostas possíveis a essa condição humana?


Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 5 de novembro de 2015.

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