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Talking, from the series Customs of Women Today (Yamamoto Shoun, 1906-1909)

Eu sei o que é, mas não sei explicar

Dias atrás, preparando uma aula do Seminário 20 de Lacan, me vi dizendo uma frase que certa época povoou minha infância em Caldas Novas. Uma de minhas amiguinhas saiu com a brincadeira de “dicionário”. À queima-roupa, éramos conclamadas a dar uma definição de palavras corriqueiras.

Instalou-se uma angústia generalizada, porque descobrimos que não saía nada de nossas bocas. Os olhos viravam, mãos se esfregavam, pezinhos batiam no chão, risinhos sem graça e nada.

Perguntas do tipo “o que é derramar?” ficavam sem resposta. Imaginávamos o líquido caindo para fora de um recipiente, imaginávamos a sujeira, a imagem estava lá, mas a definição não saía.

Mas, com tudo isso, descobrimos algo bem importante: podemos saber o que algo é e ainda assim não saber explicá-lo. Mesmo coisas muito familiares e fáceis.

Talvez hoje possamos tirar lições mais úteis ainda: nem tudo precisa de explicação para existir nem para que possamos fazer algo com a tal coisa que não sabemos explicar, mas que sabemos o que é.

Isso quer dizer que podemos desbancar um verdadeiro vício que nos domina que é achar que conversar, “dialogar”, fazer uma “DR”, ou o contrário, quebrar o pau, brigar feio (ou bonito) são os únicos caminhos para se encaminhar um impasse. No século 21, temos muitos outros instrumentos para agir sem saber a razão daquilo, mas ainda assim achar saídas.

Vamos a um exemplo doméstico de uma mãe que chega para sua sessão de análise bufando de raiva da filha de 9 anos que está lhe tirando do sério.

A menina pede para ir a um determinado passeio com coleguinhas e a mãe – calmamente – argumenta que naquela semana já tinha tido passeio. A menina, aumentando o tom da voz, insiste que as outras mães deixaram suas filhas participarem.

A pobre e desconsolada mãe, já nos limites da paciência, anuncia a tão conhecida expressão: “Eu não sou as outras mães”. Tiro perdido. A menina continua, agora, com desespero e pressão ao máximo: ”Deixa, mãe! Deixa, mãe!” A mãe explode de raiva, se sentido desrespeitada, perde a paciência e grita. Sai da cena envergonhada, sentido que perdeu a parada quer a filha vá ou não ao tal passeio.

História bastante corriqueira, os pais de crianças e adolescentes bem sabem disso.

Diante de mim, a mãe desconsolada afirma que não dá conta de não entrar no jogo da filha.

Eu digo que não acredito que ela não possa ser mais esperta, competente e forte do que uma criança ou adolescente. “É só uma questão de se usar instrumentos eficazes”, eu digo, “Você está usando fósforo riscado, frases pasteurizadas que já perderam o efeito”.

Proponho à mãe perdida uma nova estratégia que eu chamo de “fazer-se de espelho”. Quando a menina começar com o seu teatrinho, à mãe caberia fazer a repetição minuciosa das palavras, tons de voz e trejeitos da garota.

Na semana seguinte, a mãe chega com um sorriso exultante e os olhos brilhantes: “Deu certo, deu certo! Parecia que nada mudaria aquele tipo de situação”.

No primeiro pedido que mereceria uma negação, tudo aconteceu como sempre. A menina expressou o novo pedido, a mãe respondeu calma e respeitosamente. Começou o segundo ato, que era onde a pequena roubava as forças da mãe.

A menina seguiu seu ritual subindo a tensão de nível e a mãe começou a imitá-la. A filha respondeu com uma expressão intrigada, do tipo: “O que está acontecendo por aqui?”

Voltou à carga e a mãe fez igualzinho. Aí foi a filha que se perdeu e começou, já em desespero, a pedir para a mãe parar. Saiu com o rabinho entre as pernas sabendo que foi desmascarada.

Cadê a mãe? Não havia mais mãe ali para ser manipulada. Ela era só um espelho e a filha pôde ver a si mesma no espelho-mãe.

Funcionou! Resolveu e não teve explicações (que já tinham passado da conta).

Falar, acredite, muitas vezes pode ser o maior atrapalho para algo mudar.


Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 3 de março de 2016.

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