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Solte suas peles

Valéria Belém

O que será, que será?
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo”

(Chico Buarque de Holanda)

A atmosfera, a cebola, o solo… todos têm em comum serem estruturados em camadas.  Nós também. Temos várias delas, sim, montadas ao longo de anos, desde o momento em que nos enxergamos como seres humanos, em nossas identificações. Por exemplo: Celso é um cozinheiro de mão cheia. O avô dele também era. Ser bom cozinheiro é algo de Celso ou apenas uma construção feita no intuito de agradar o avô ou sua família? Pode ser uma coisa, pode ser outra ou ainda algo além.

A questão posta para nós, feitos de carne, osso e inconsciente, é que essas camadas, ao serem paulatinamente retiradas, nos permitem descortinar quem somos.  Não se assuste com esse “descamar”, afinal de contas sempre sobra um resto, que é o que nos constitui. Como a pianista que pensava fazer seu trabalho tão somente porque a mãe a forçara desde pequena a estudar o instrumento e, um dia, percebeu que, colocando de lado a birra que tinha da influência materna, ela gostava, amava!, ser pianista. Aquilo estava nela, ERA ela. Que maravilha poder usufruir disso, afinal! Entretanto, também dá um medo enorme mexer nas identidades cristalizadas nessas camadas. Certo pai, ao ser instigado a deixar esse papel de lado para ver-se, exclamou, em pavor: “O que eu seria se não fosse o pai do Cláudio?”. Assim a resistência se dá a conhecer.

Esse é o trabalho da psicanálise – deitado em um divã, sentado na poltrona ou em outra posição qualquer que o analisante preferir, ele poderá soltar peles. E o resultado disso, como descreve o escritor e psicanalista Jorge Forbes, é que “qualquer tentativa de explicação de si mesmo acaba, inevitavelmente, em um ponto duro, real, resistente a qualquer nomeação, semelhante ao “que será que será que nunca tem nome nem nunca terá”, cantado por Chico e Milton.”

O real, que para o psicanalista francês Jacques Lacan é o que não pode ser traduzido em palavras nem coberto pelas imagens, é aquilo que sobra, é o resto, são os nossos desejos – onde existe algo que não se pode governar, que é impossível educar, que não obedece às leis e, por isso mesmo, buscamos envelopar para conviver com os outros, em sociedade.

Mas, tudo isso, tanto trabalho, para quê? Será que a gente se descasca para buscar explicações do que ocorre hoje reverberando um passado longínquo?  Ok, nada mais tentador que poder nomear (ou explicar) o que sentimos ou experimentamos.  E achar que isso é suficiente.

Mas, afinal, é tão pouco, não? Delícia das delícias é descobrir o que fazer com isso que É você, olhar para o futuro, arriscar-se naquilo que transforma e tira o pó dos sapatos, lançando os pés em outras estradas. Talvez, e por que não?, tão somente desfrutar do ser. Como um lagarto esticado ao sol, deixando o calor entrar. Liberdade pura.

 

Originalmente publicado no blog Mundo Psi, da Revista Zelo, em 11/01/2017

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