Luciene Godoy //
O ser humano é pura invenção, ficção de si e do mundo que habita. O mundo que criou para viver sobre um outro mundo material dado. Assim fazemos em nossas vidinhas prosaicas, quer saibamos ou não: as criamos sobre a materialidade dos objetos que nos cercam. E, se toda invenção pode ser categorizada como arte, então posso dizer que pratico a psicanarte, no campo das ciênçartes.
O psicanalista Jacques-Alain Miller, em discurso de preparação para o Congresso Mundial de Psicanálise, realizado em abril de 2016 no Rio de Janeiro, lançou um convite a todos para fazerem de seu sinthoma (a maneira diferente de ser que não é mais uma doença, mas, se consciente, um estilo) a escada, o banquinho, o pódio em que podemos nos apresentar ao mundo como uma obra de arte. O ser-arte, eu diria, que cada um de nós é.
Se faço essa aproximação/junção da ciência e da psicanálise com a arte, é por tomá-las por sua vertente de prazer – prazer da estética, do que é belo e enche os sentidos de deleite. São indescritíveis os prazeres proporcionados pelo conhecimento. Seguir os caminhos da epistemofilia, o impulso de querer conhecer, é lindo e transformador! O conhecimento é bonito, é arte.
A psicanarte do século 21, pautada no último ensino de Lacan, passou a chamar o “sujeito do inconsciente”, termo freudiano, de “parlêtre” – o ser falante, o corpo falante, lacaniano. Um ser que goza, que tem prazer com a fala, como que eterno poeta, poetando o mundo. O prazer de dizer além do que diz, de inventar significados ao ar, de falar para rimar, para encher o mundo de sons como a música – outra arte.
Enfim, podemos admitir descaradamente: somos seres de prazer. Tudo o que fazemos é em busca de prazer, ou seja, Freud tinha razão. Mas afirmar isso até parece um disparate, já que vemos tanto sofrimento, o tempo todo, na vida de ricos e de pobres. Não se iluda, sempre estamos na escolha que (secretamente, lá no fundo de nossa alma) cremos ser a melhor para nossas vidas. O alcoolista acredita que nada lhe trará mais prazer (alívio?) que o álcool.
É só/tudo isso que não nos deixa mudar. Estamos sempre “na melhor escolha” das nossas vidas. O que faz sofrer é a cegueira e a percepção que veio conosco de TerraUm, o mundo que habitamos no século 20, no qual o objetivo era viver para ser aceito. Garantíamos a nossa vida nos matando como seres únicos e diferentes e nos “con-formando”.
Da “trans-formação” ocorrida na esteira de produção em série da fábrica de seres padronizados do século passado, o resultado era apenas um: pessoas iguais e infelizes por terem exterminado a si mesmas. Opa, melhor dizer que todas se fingiam de iguais! Éramos assim conduzidos a trair nossa condição humana por excelência, o fato de sermos únicos e diferentes de todos os demais.
Em TerraDois, nosso planeta no século 21 e no qual temos o privilégio de viver, Jorge Forbes afirma que a função da psicanálise (leia-se psicanarte) é “possibilitar um gozo que não trucide o corpo”. Sem o moralismo das obrigações do certo/errado, hoje o que posiciona o ser-falante são as consequências de suas escolhas e de seus atos.
Quer GPS mais sofisticado do que esse para guiar o ser humano? Cada um cuidaria de si e de seu entorno com a competência dos que têm o corpo e não como um objeto que cedeu sua potência a um outro de cuja aceitação depende.
Aí líderes perderão, talvez pela primeira vez na história, a função de cabeças que pensam e decidem pelos demais. Cada um de nós, conectados sem passar por instituições que filtram nossos desejos e os transformam nos delas, construirá um estilo de vida tão bom para si quanto para o mundo.
A ciençarte já está em curso. Quem viver verá o que ela vai produzir.
Originalmente publicado no blog Mundo Psi, da Revista Zelo, em 07/11/2016
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