Não é comigo

Luciene Godoy //

Penso que “não é comigo” é a frase menos falada e mais vivida em nossas relações diárias com os outros e com nós mesmos. Não falamos, mas fazemos. Não falamos, mas agimos guiados por esse princípio: o princípio da irresponsabilização pelo que nos acontece.

No livro Inconsciente e Responsabilidade, o psicanalista Jorge Forbes escreve sobre a responsabilização como o caminho tomado por pessoas que habitam um mundo em que cada vez mais é difícil convencer que somos impedidos de fazermos o que queremos. Ele nos presenteia com uma frase que, embora catastrófica, é também engraçada: “A neurose é a forma perfeita de ter sempre razão”.

Ter razão é muito bom, concordemos. Só fica ruim quando descobrimos que, para ter razão, adulteramos a nossa percepção dos fatos e isso não muda as consequências.

Sobre o mesmo tema, Forbes, em Da Palavra ao Gesto do Analista, afirma que “há uma certa comodidade na neurose. É fácil pensar-se industrial quando não se tem uma indústria; ou escritor, sem nunca ter escrito uma página, ou comerciante, sem nunca ter aberto uma loja; ou intelectual, sem nunca ter se debruçado sobre os livros”.

Uma comodidade que nos garante um mundo fictício, no qual acreditamos, sem ter de confrontar aquilo que pensamos sermos ou termos com aquilo que efetivamente conseguimos realizar.

Dizemos para nós mesmos – e o pior, acreditamos – que, “se não realizamos ainda, é por causa de alguém ou alguma coisa que nos atrapalhou. Ou é por causa do tempo que ainda não correu o suficiente para que o fato se tornasse realidade”. E isso nos casos em que o tempo já passou e vive passando e a gente esperando, esperando que a nossa vez chegará.

Fato é que a neurose protege mesmo o sujeito de se jogar na vida, como salta o nadador para dentro da água que vai colhê-lo e ao mesmo tempo ser o desafio: nadar em menos tempo, mergulhar, fazer belas acrobacias aquáticas.

A neurose protege o sujeito da realidade porque ela é o instrumento de colocarmos a culpa, ou a responsabilidade, ou o poder de realizar e fazer acontecer, no outro.

É divertido ver como isso opera nas pessoas que estão vendo uma partida de futebol. Olhos pregados nos corpos que jogam, transportados para o campo, correndo com os jogadores de seu time aos quais se identificam, chutando no ar quando o outro chuta a bola. Se a imagem do meu corpo lá no jogo dribla bonito, rouba uma bola difícil ou, glória total, faz o tão desejado gol, aí então é um verdadeiro orgasmo expresso no pulo e no grito de prazer que escapa arranhando a garganta pela potência da emoção. Se o jogador-minha-imagem falha ou, miséria das misérias, se o mesmo acontece com todo o time, aí viram todos inimigos, transformam-se naqueles que não mais me representam, pois “eu não faria aquela besteira”. Não é comigo, é com o time.

Na vida, como no jogo, é a mesma coisa. O que foi bonito fui eu que fiz ou sou eu que faria se chance tivesse tido.

É um prazer indizível colocarmo-nos no corpo do outro. Todos vencíamos quando o Ayrton Senna vencia. No domingo, todos nos sentíamos brasileiros, disciplinados, talentosos, ousados, ricos e famosos com ele. Na segunda-feira, voltávamos para nossa vidinha sem muitos acontecimentos.

Viver a vida no outro tem prazo de validade e não nos exime de “fazer” uma vida que também nos agrade muito como a que imaginamos que o outro tem.

Os que assumem a potência de ter feito algo que tenha dado certo ou errado são os que agem sob o princípio do “é comigo mesmo”, daqueles que se responsabilizam e assumem a autoria de seus feitos, sem serem vítimas, mas os provocadores das consequências que chegam.


Artigo originalmente publicado na coluna Divã do Popular, do jornal O Popular, de Goiânia, em 17 de abril de 2015.

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