Miseráveis valentões


The Fall of Phaeton (Rubens, Peter Paul, 1604/1605)
The Fall of Phaeton (Rubens, Peter Paul, 1604/1605)

Luciene Godoy
Já escutei muito aquela piadinha: “O pai leva um chute do patrão, chega nervoso e dá um chute na mãe. A mãe fica irritada e dá um chute no filho. O filho, revoltado, dá um chute no cachorro. O cachorro chuta o gato”. Termina por aí essa história. Para nós, na vida real, talvez não se dê muito diferente.
Temos estado assustados com a violência “gratuita” exercida contra nossos filhos adolescentes. Dia desses, aconteceu com o filho de 15 anos de uma amiga que estava em frente de sua casa mandando mensagens pelo celular. Parou um carro com dois rapazes, um saltou e começou a chutar e a espancar o garoto, que conseguiu fugir, entrar em casa e fechar o portão. Não sem antes ter levado uns pontapés e murros e ter sua calça rasgada quando caiu diante do primeiro ataque inesperado. Minha amiga chamou a polícia, fez a ocorrência e tudo mais.
Nossa! Então agora é assim? Antes os marginais agrediam os marginais. Depois começou uma história estranha de adolescentes de classe média atearem fogo em mendigos. De “filhinhos de papai” agredirem homossexuais. Agora, esse mesmo tipo de adolescente – provavelmente gerado em um lar mais ou menos igual à maioria dos da sua classe – sai por aí espancando os iguais?
Essa é a novidade: os adolescentes violentos (na rua, porque em casa muitas vezes são calmos e até meio ausentes) não mais espancam os “marginais, infelizes da vida”. Espancam os iguais. Alguns dizem que eles estão passando para frente a violência que recebem em casa. Estão mesmo?
Se pensarmos que a sutil ausência de um pai e de uma mãe é uma violência, podemos, sim, dizer que essa é uma violência da qual eles sofrem. Se pensarmos que os pais e a maior parte das mães de hoje, ocupadíssimos em ganhar mais e mais dinheiro para o consumo de todos, não têm muita disponibilidade para estar de fato presentes com os filhos, isso é uma violência.
Podemos pensar que é um tipo de violência a existência de pais culpados e sem energia – que foi gasta na luta para ter cada vez mais, pagar colégios bons, cursos disso e daquilo – que não disciplinam seus filhos, deixando-os à mercê de seus próprios impulsos descontrolados. Impulsos que necessitam do trabalho psíquico que só a presença de um adulto pode oferecer para desenvolver na criança e no adolescente a segurança e a autoestima que lhe proporcionarão bem-estar e serenidade para habitar o próprio corpo em paz, sem precisar jogar no outro o seu “kakon” – as suas fezes não processadas, o seu sofrimento interno não compartilhado com os de casa.
Vivem num mundo familiar de relações tão pobres que têm que sair por aí colecionando ataques a outros corpos, semelhantes ao seu, até para fazer um teste de realidade – como no filho de minha amiga, indefeso naquele momento.
Indefesos são os que fazem isso também porque, não sendo filhos de favelados, analfabetos e miseráveis, se revelam miseráveis de alma. Miseráveis de investimento afetivo real, com a presença de alma que não pode ser substituída por iPhones, iPads, etc. Batem nos desamparados para, em se vendo neles, destruí-los, numa tentativa inglória via espelho de se sentir diferentes.
É uma violência própria do narcisismo. Do fato de ver no outro características que não suporta ver em si mesmo e que nenhum adulto o ajudou a elaborar de outras formas.
Na sociedade do hiperconsumismo, os pais que têm grandes despesas com os filhos e acham que “estão dando o melhor” para eles estão apenas caindo no conto do “compre mais”.
Presença não se compra em nenhum shopping center do mundo.
Olho no olho e sorriso de real satisfação em estar junto, em descobrir coisas, em viver momentos banais com carinho, talvez custem apenas deixar de lado alguns “sonhos de consumo” e simplesmente viver cada momento.

Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 13 de março de 2015.


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