Luciene Godoy //
Dizem que tem um grupo nas redes sociais com esse título. Provavelmente ele é constituído por pessoas que já descobriram o quanto é bom ser rodeado por gente de bem consigo mesma.
O que parece tão óbvio – é claro que todo mundo gosta de estar ao lado de gente feliz – não funciona bem assim no dia a dia. A boca fala, mas o corpo não faz.
Sem nos adentrarmos para considerações moralistas sobre “pessoas fingidas que não vivem o que dizem”, comecemos por afirmar que é muito próprio do ser humano – sem ser feio ou não – dizer uma coisa e fazer outra.
É que não nos vemos mesmo. Nos sentimos de um jeito, mas agimos de outro.
Vivi uma situação bem engraçada com um amigo que foi filmado em um aniversário. Estávamos todos olhando as imagens, rindo e brincando, quando ele, boquiaberto, com os olhos injetados de surpresa e descontentamento, afirmou numa possante voz que nos atingiu com a força que emanava de sua emoção repentina: “Geeente! Eu não sabia que eu era tão agressivo e desagradável. Eu me vejo tão doce”.
Comoção geral. Sentimentos diversos. Uns admirando a coragem e a honestidade do amigo de tantos anos, outros constrangidos e culpados como se tivessem participado de uma cena de tortura com o companheiro de farras.
E o nosso herói – já que chamamos os corajosos de heróis, e nesse caso ele bem merece esse título – prossegue agradecendo a quem o filmou dizendo que tinha ganho um dos melhores presentes da vida: a oportunidade de se ver numa situação corriqueira com os olhos de um outro.
Não só herói – doméstico que seja – como também um sábio. A psicanálise afirma o mesmo: não nos vemos a não ser através da intervenção do outro, através do olhar do outro. E quem fala disso de forma inusitada e assustadora é Lacan, quando se vale do mito do louva-a-deus gigante, diante do qual todos nós nos encontramos quando estamos frente a frente com o olhar do outro.
Esta fábula nos faz encarnar o papel daquele que não sabe o que é para o outro, no caso o louva-a-deus gigante e assustador. Esse fenômeno se instala em todos nós quando crianças, por volta de 1 ano de idade: nos damos conta da dependência na qual nos encontramos diante do que o outro quer e se vamos ser aceitos, amados e protegidos.
Che vuoi – que queres? – perguntamos diante do outro todo-poderoso. É o mesmo processo que se repete em nossas relações interpessoais, que, infelizmente, confundimos com as relações intrapsíquicas – nós com nós mesmos.
Gente feliz é gente que se viu e não fica mais o tempo todo atormentada pelo que nós, do lado de cá, estamos achando dela. Por isso o torturado se torna torturador, pois tenta se livrar do nosso olhar aprisionador, que nem está voltado para ele, como que diante do louva-a-deus gigante.
Gente feliz teve a coragem, a capacidade e a escolha de se ver com as suas imperfeições. Não fica jogando nos que estão ao redor a responsabilidade pelo mal-estar que sente – e vai, é claro, encher o saco, ou seja, cobrar, ficar dando satisfações não pedidas, tentar “se libertar” sem saber que é de si mesmo e de suas próprias cobranças que se trata de se libertar.
Gente feliz entrou dentro da própria pele do tipo “chinelo velho que calça o pé doente”. Da pele que não é perfeita, mas é a sua. Gente feliz não vive te cutucando tentando entrar na sua pele para saber de si. Não confunde o corpo dela – da pessoa feliz – com o seu e, portanto, não vai deduzir que precisa ficar emburrado, numa atitude passiva, nem te empurrar para ficar livre e bem, numa atitude ativa.
Gente que se livrou da dependência do olhar do outro é ótima companhia pelo simples fato de ser mesmo um outro e não um parasita, um necessitado de seu olhar para se ver e se sentir.
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Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 21 de janeiro de 2016.