50 tons de dor e prazer

Cena do filme Cinquenta Tons de Cinza (2015)
Cena do filme Cinquenta Tons de Cinza (2015)

Luciene Godoy

Tem gente pensando que os tons de cinza se referem à cor das gravatas que o biliardário Christian usa para amarrar sua amada, garantindo um corpo à sua mercê durante o sexo, no filme Cinquenta Tons de Cinza.

Se assim fosse, não faria o menor sentido a protagonista Anastásia se referir ao amado como “o meu Cinquenta Tons”. É que a autora joga, linda e poeticamente, com a polissemia da palavra – só possível no inglês, língua em que foi escrita a história.

Fifty Shades of Grey – título original do livro e do filme – pode também ser lido como “cinquenta sombras do Sr. Grey”, nome do protagonista, mas também o nome da cor cinza. Ele mesmo diz que o cinza fala das 50 maneiras que foi “fodido” – leia-se: maltratado – na primeira infância, quando, até os quatro anos, viveu com uma mãe prostituta e viciada em crack.

Além de “tom”, o shade do inglês pode ser também traduzido como “sombra”, que é o nome que damos para a ausência de luz, algo inexistente, portanto. Mr. Grey é o Sr. Sombra, é “algo inexistente”, é a ausência de um corpo.

Se Christian Grey é uma sombra, ele não tem corpo. Mas pode usar o de alguém. De quem? Só serve o da amada, na qual ele se reflete para ter existência de corpo num corpo que pode ver diante de si, já que o seu é um vazio, uma sombra.

O ser humano tem um funcionamento psíquico reflexivo que Lacan chama de “Registro Imaginário”. Nele, todos nós, com maior ou menor intensidade, adquirimos existência através da visão do corpo do outro. Esse é um fenômeno próprio do ser humano que faz parte do nosso psiquismo, instaurado no “Estádio do Espelho” e cuja forma de expressão mais intensa é o que comumente chamamos de apaixonamento.

Pois é, não se assustem, mas todos nós, quando nos apaixonamos, fazemos do corpo do amado a nossa moradia psíquica. O corpo do ser amado – que eu posso ver, e paixão é fruto do olhar – é tomado como o corpo próprio. E o que acontece nele é sentido como se estivesse acontecendo no meu.

Quando Anastásia pergunta a Christian qual é o prazer dele, ele diz que adora ver a pele branca dela se tornando cor de rosa debaixo de suas mãos (e ele, que precisa tanto de pele e de corpo, deve mesmo ficar fascinado ao ver a vida rosa surgindo da pele da amada pelo toque forte de suas próprias mãos – é criar um corpo para existir nele).

Porém é ela que dá os limites (o que, afinal, cabe a cada um de nós em nossas relações amorosas) do que lhe dá prazer ou dor, que, claro, também dá prazer – veja quanta gente saltando de uma doença a outra numa relação interminável de gozo em conseguir vínculo pela dor.

Christian também lhe responde que estar no controle máximo sobre a outra pessoa o excita. Isso também é uma forma de estar no corpo dela, como o cérebro comandando o corpo. Ele entra com o mental e ela com o corpo obediente (e extrai um ganho da obediência, é claro). Essa é também a descrição do que chamamos de díade entre a mãe e o bebê: a mãe entra com o psiquismo e o bebê com o corpo.

É isso que acontece entre o casal e por isso todas as sensações são tão intensas, misturadas de dor e prazer, passadas numa situação que remonta ao início de nossas vidas psíquicas nos primeiros encontros com o corpo do outro. Encontro que no caso dele foi muito doloroso e por isso a inclusão da dor na cena amorosa.

Tudo isso faz parte do encontro apaixonado? Faz sim, com nuances não só cinza, mas amarelas, vermelhas, verdes… Todas as cores matizes do que é próprio da sexualidade humana, que é, como tudo mais, construída a partir de nossas circunstâncias e escolhas.

Sustentar o encontro amoroso num mundo de prazer, de descobertas e compartilhamento de cada novo dia, é a nossa construção na obra de arte que pode se tornar o encaixe de um corpo no outro, de uma vida na outra.


Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 27 de fevereiro de 2015.

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