A verdade mentirosa

Pinocchio (Enrico Mazzanti, entre 1852 e1910)

Pinocchio (Enrico Mazzanti, entre 1852 e1910)
Pinocchio (Enrico Mazzanti, entre 1852 e1910)

Luciene Godoy
Assunto muito apropriado para o Dia da Mentira.
Aliás, não é intrigante que tenha um Dia da Mentira? Para quê?
Para nos divertirmos enganando os outros, ora! Enganar é divertido? Parece que sim, se tomado em um viés como esse do Dia da Mentira.
Algo semelhante acontece no carnaval quando homens se divertem se vestindo de mulher e vice-versa. Nos fantasiamos de palhaços, bichos e personagens conhecidos. Nos divertimos fingindo ser o que não somos. Mentimos para nos divertir.
A verdade, no entanto, é outra coisa. Quem somos no dia a dia é a nossa verdade. É o que somos de fato, sem fantasias. Mesmo?
Nada disso. Não para a psicanálise do século 21 que faz uso da expressão título desse artigo – A verdade mentirosa – para falar que o que somos, o nosso senso de id entidade, também é uma fantasia. Quer dizer: uma mentira, uma ficção, uma invenção.
Não se desespere, vou explicar: é que o nosso eu é fruto de “sucessivas identificações”, como diz Freud. Somos todos frutos de múltiplas identificações como se fôssemos uma cebola. Aquela bola, que parece ser uma unidade indivisível, é na verdade a junção de várias pétalas. Juntas, elas proporcionam a ilusão de ser uma unidade.
Cada pétala é um traço que pegamos de alguém, é algo que inferimos de uma situação e aí se faz um mosaico dessas aquisições a que chamamos de eu.
É por isso que dá para dizer que o eu é uma invenção, uma ficção tirada da nossa história infantil.
Mas, veja bem, esse eu não está fixo no passado – que é só o seu começo. Essas identificações vão sendo mais ou menos mudadas ao longo da vida. Deixamos de ser crianças para nos tornarmos adultos, deixamos de ser solteiros e sozinhos para nos tornarmos pais, reproduzindo outro ser humano. Olhamos no espelho e nos vemos velhos – que mudança!
O que pensamos ser (o eu) não é uma verdade absoluta, é uma verdade fictícia, inventada. Que nos desesperamos para não mudar ou que buscamos transformar através de novas identificações, de novas escolhas.
Pau que nasce torto morre torto.
Bem dito pau, porque o ser humano pode nascer de qualquer jeito: torto, redondo, quadrado, bonito, feio… Disso ele pode fazer alguma outra coisa com a parte que lhe cabe, que é poder transformar sua própria história, reescrevendo-a em seus próprios termos.
A verdade mentirosa – porque ficcional – que somos, que parece, em princípio, uma maneira feia de nos referirmos a nós mesmos, pode ser a passagem para sacarmos que podemos nos libertar do que “está escrito”, do que “é assim”, e inventar o que queremos vir a ser.

Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 1º de abril de 2012.


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