Boca sem corpo


(Bruce Nauman, 1970/ Tate Collection)
(Bruce Nauman, 1970/ Tate Collection)

Luciene Godoy
Alguma possibilidade de existir uma boca sem corpo? Uma boca sem um corpo que a carregue, que a siga e que honre o que ela diz?
Existe! E em uma quantidade assustadora.
Você conhece uma frase muito utilizada quando se chega a um impasse nos atos de alguém: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”? Essa é a descrição de uma boca que fala algo cujo corpo nega. O corpo faz diferente daquilo que prega a solitária boca-sem-corpo.
No século 20, que se sustentava num modelo vertical de relações de poder, cada um que detivesse tal posição, para existir, precisava mantê-la ao preço de se enquadrar a um ideal. Fosse a pessoa como fosse, teria de entrar no papel que se esperava dela e se enquadrar ao modelo fornecido pela sociedade para cada um desses papéis. Se o corpo quisesse participar era outra história, isso não entrava nas contas.
O pai, por exemplo, precisava cumprir o modelo de comandante – o pátrio poder ; o pai que tudo sabia, que tinha o poder de fazer e desfazer, que gerava a famosa frase da mãe-rainha-do-lar: “Quando seu pai chegar você vai ver”.
A mãe, dedicada ao lar e aos filhos, amorosa e nervosa, padecia no paraíso. Os dois conduzindo sua ninhada sabendo que “tinham que” aguentar firme e dar todas as respostas. Quando não sabiam, faziam de conta que não tinham dúvidas. Tinham que bancar os fortes para os filhos não fraquejarem e, horror maior, para que não os “desrespeitassem”.
Então, foi essa história de adulto mandar o jovem fazer algo que nem mesmo ele fazia que gerou a frase: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Ela mantém um pouco a dignidade do adulto que, mesmo não fazendo, se mantinha no posto de poder, de ter que ensinar o que era “certo” – leia-se o que era padrão.
Lacan, nos últimos anos de sua vida, ensinava aos analistas que, para saber de alguém, para saber de seu desejo, era muito mais eficaz olhar para onde os seus pés estavam indo – para o que o seu corpo estava fazendo – do que escutar aquilo que estava falando.
É que, mesmo tendo de obedecer às regras, o corpo continua a querer gozar. Existe um prazer de fazer com o corpo enquanto a boca fala o que é aceito pela sociedade, é essa a divisão.
Quando falamos algo e fazemos outra coisa, a boca falou, mas o corpo não obedeceu, A boca não mandou no corpo – boca sem corpo. É que a boca fala o que vai nos deixar bem com o outro enquanto o corpo faz o que vai nos deixar bem conosco.
Ao viver nessa cegueira, sem fazer escolhas, fazendo e negando, vivemos de uma forma conflituosa que nos leva a nem gozarmos da aprovação do outro e nem do que o corpo gosta de fazer.
Sustentar o que dizemos quando é para nos deixar bem com o outro dá uma meia alegria, a alegria de agradar e de ser aceito, mas nos deixa nas mãos do outro. Sustentar o que se é e fazer o que se quer é o manjar dos deuses da existência.
Podemos escolher ser o infeliz do padrão – o que obedece para ser aceito – ou o feliz da singularidade, aquele que se coloca no mundo como é mesmo, único, diferente de todos. É dar existência a si mesmo fora do padrão, sendo o que se é.
Exatamente como gozam os artistas, que criam algo estranho e só seu, o apresentam ao mundo para que possa ser integrado como enriquecimento e passar a fazer parte de um universo que foi mudado ao acolher mais um novo objeto.
Assim podemos ser todos nós obras de arte vivas e únicas, nem de longe perfeitas, trocando com outras obras de arte únicas que são cada ser humano que existe – embora muita gente não saiba disso e por essa razão permaneça tão feio e descuidado de si.

Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 6 de março de 2015.

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