Amar & Desejar – quem já se tem

Princely Couple (Artista desconhecido, obra datada de 1400–1405 e localizada no Irã) - http://metmuseum.org/
Princely Couple (Artista desconhecido, obra datada de 1400–1405 e localizada no Irã) – http://metmuseum.org/

Luciene Godoy

De que amor estamos falando? Do “amor-desejo” ou do “amor-amizade”?

Do amor Eros, de Platão, para quem amar é desejar. Fácil de definir: se você deseja é porque você ama. No amor erótico é isso mesmo. Só se ama enquanto se deseja.

A contrapartida é que, para desejar, você não pode ter – uma lógica clara e límpida: não se deseja o que se tem. Só se deseja o que não se tem. Você só ama enquanto deseja. Quando o desejo acaba, o amor acaba.

Desejamos o que nos falta. Se o conquistamos, o desejo, coitadinho, morre. Já pensou que coisa triste o desejo assassinado pela presença? Dessa forma o encontro é impossível mesmo.

Essa é a fórmula do desencontro eterno tão bem narrada no poema de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo/ que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,/ que não amava ninguém”.

A base do erotismo é buscar satisfazer a falta obtendo – o que dá uma sensação sublime de ganho de potência. Mas, quando se obtém, perde-se aquele desejo que nos movia rumo ao objeto amado.

O cavalo com a cenoura dependurada diante do seu focinho que o faz correr atrás – e que, quando comida, é substituída pelo vazio do “E agora, José? A festa acabou…” Até parece a maldição do “que é bom dura pouco”.

Não exatamente. Tem amor que dura e é o amor-amizade, que na Grécia Antiga era chamado de Filia. É o amor que temos pelo que temos. A amizade não funciona na falta e na descoberta, mas na continuação do que conhecemos e apreciamos. É um amor contínuo, reassegurador entre pessoas que se gostam.

Seria possível os dois juntos? Podemos desejar e ter ao mesmo tempo?

Aposto na junção possível de Eros e Filia. Aposto nessa parceria, nesse encontro, nesse Amar & Desejar quem já se tem.

Basta uma pequena mudança de perspectiva. Um pequeno deslocamento que mude sua visão fixada nos tipos de amor separados que tínhamos. Foque melhor e veja que é um tremendo engodo nos convencermos que temos definitivamente o ser amado.

Não cultive a crença no “agora que casamos, ele/ a é meu/ minha para sempre” ou “agora que temos filhos, temos mais garantias de ficarmos juntos”. Você pode argumentar que ninguém pensa mais assim. Concordo! Não pensa, mas age como se pensasse, porque para de namorar, para de querer “conhecer” o outro para sempre.

O “para sempre” pode até existir. E o “até que a morte nos separe” – quer dizer, até que o desinteresse nos separe – pode não existir se sua vida a dois for tão cheia de acontecimentos como a sua vida a um.

Você pode ter alegria com o que já é seu, ter o imenso prazer de ter o que você já tem – tudo provisório, não se esqueça. Quando isso acontece, vivemos coisas do tipo que aconteceu a uma analisante que, com pouco tempo de casada, já passava meses sem fazer sexo, numa perfeita vida de irmãos que se dão bem – destino, aliás, dos bons casamentos.

Ela me relatou a seguinte cena: “Estávamos na sala de TV, cada um de um lado do sofá, e de repente olhei com estranheza aquele homem lá na ponta. Para minha surpresa, pensei: ‘Como ele é bonito, como é inteligente e fala gostoso’”. Ao se dar conta de que vivia com um estranho – o que é destino de todos nós, veja bem –, ela enxergou um outro e não mais aquele que se misturara a ela.

Ela contou que foi tomada de um desejo repentino por aquele estranho que também era conhecido. Cujo beijo ela gostava, mas já não sentia mais. Cujo cheiro do corpo lhe dava prazer. Esse conhecido gostoso voltou pela presença do estranho.

Mais ou menos isso. Podemos juntar amizade com desejo dentro dessa pulsação de ter e não ter, de usufruir e perder, de Amar & Desejar.

Perder para reencontrar de novo nessa aventura que é o nosso dia a dia. Aventura que existe para aqueles que não vivem a vida morta.

Se você vive uma vida de vivo, ela é uma aventura, pois que desconhecida a cada momento.


Artigo originalmente publicado no jornal O Popular, de Goiânia, em 3 de setembro de 2015.

Este post tem um comentário

  1. Maria Helena Ferreira

    Luciene, com a leitura deste artigo, fiz uma volta ao início da nossa análise, em 2001, suas palavras permanecem vivas em minha memória.

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