Luciene Godoy //
No começo do século 20, Freud chamava as mulheres de “o continente negro”. Referia-se à ilustre desconhecida de todos os homens que inutilmente tentavam entender os seus desejos.
Maria Rita Kehl, em sua poesia psicanalítica, diz que não tem nenhum mistério não. Que o que a mulher não podia mesmo era “querer para si”, fato que a destinava a se fazer o desejo do homem. No patriarcalismo, a mulher é mesmo uma posse do homem.
O tão famigerado segredo de Estado do desejo feminino para o seu homem é que ela tentava ser o seu objeto de desejo, e isso para sobreviver. Não podia assumir claramente o que queria. Seu desejo só saía – porque sempre sai – por caminhos disfarçados, dando e motivo para o “mistério do desejo feminino” que deixava tontos os maridos bem intencionados.
Chegam os anos 30 e 40, os homens se embrenham na guerra e as mulheres passam a substituí-los nas fábricas, nos escritórios e mesmo na família. Daí em diante as mulheres nunca mais voltaram a se trancar novamente no reino doméstico.
Passaram, cada vez mais, a ter o que tinham os homens. E para não nos esquecermos, de fato caminhamos muito. Há poucas décadas atrás uma mulher que não fosse a escolhida de um homem podia ter todas as insígnias do valor social, mas não passava de uma coitadinha, boa profissional, que ganha bem, MAS tinha ficado para titia.
Essa mulher que ganhou o mundo com seus pés foi e ainda é desvalorizada em relação aos homens. Ganha menos em funções similares etc, etc.
De fato, o que veio de fora ao longo dos anos sempre foi desvalorizador para a mulher.
Quero falar agora, porém, de um outro desvalor, que é o desvalor que a própria mulher joga sobre si? Muito sutil isso…
É que todo esse desvalor que sempre veio da cultura – patriarcal, não nos esqueçamos – também está DENTRO dessa mulher e isso nós não vemos. Não vemos a força que temos meeeesmo! Não temos a serenidade dos que SE SABEM ser. O desvalor maior é o de dentro. Que faz com que nos sintamos desvalorizadas mesmo quando não é bem assim.
O marido que espancou a mulher não encontrou diante de si um olhar que o assustasse e o paralisasse (e isso é possível). Será que dá para pensar que muito do que acontece conosco é porque ficamos esperando que aconteça? Paralisadas sem vislumbrar novas respostas?
Acho muito delicado falar o que eu estou falando. Com o risco de ser mal interpretada, digo que hoje o nosso maior inimigo JÁ NÃO ESTÁ MAIS DE FORA, mas de dentro, e isso porque não vemos a hora que dá para ser diferente, que dá para virar a mesa, e não o fazemos porque continuamos a nos sentir menos, a nos sentir vítimas.
Falo de algo muito sutil dentro de nós que os discursos de valorização da mulher não alcançam: é o costume de nos sentir da mesma forma mesmo depois que já nos vestimos com vestimentas diferentes. Mesmo quando falamos palavras diferentes, continuamos a nos SENTIR em desvalor.
O inimigo maior é o interno.
Mulheres abusadas que poderiam ter dado um chute naquele lugar do cara e não se sentiram capazes de fazê-lo. Nem de perto lhes ocorre que podem fazer algo. O que podem fazer? Vão descobrir na hora. Vão se tornar a fúria, a placidez, a palavra, o gesto ou o que se fizer necessário para virar a situação a seu favor.
Mas, para conseguir fazer isso, só se ela, internamente, para si mesma, se valorizar, se ver como potente, não ficar esperando que alguém a valorize e reconheça.
Acordemos! Nossa maior fragilidade hoje não vem mais de fora, mas de dentro, por possuirmos uma autoimagem que já não corresponde mais à realidade.
Não olhe apenas para fora procurando onde está o preconceito contra a mulher. Olhe também para dentro de você mesma e você pode ter uma surpresa ao vê-lo disfarçado de mulher superpoderosa, por exemplo.
As mulheres ainda não usufruem do sentir tudo o que mudou e é esse o seu maior entrave hoje, não o externo.
O gênero já não tem mais o peso que tinha. Os desafios são outros.
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Artigo originalmente publicado na coluna Divã do Popular, do jornal O Popular, de Goiânia (GO), em 27 de março de 2015.