Nem junto nem separado

Luciene Godoy //

“Tanto os apaixonamentos quanto as separações da nossa vida amorosa são decididas por dinâmica que pouco tem a ver com os defeitos do outro… ou com as circunstâncias”, afirma Contardo Calligaris em um de seus artigos. Em outras palavras: as razões das separações vêm de dentro e não de fora.

É como se altos e baixos em nossa vida amorosa fossem, antes de mais nada, a expressão de um conflito entre liberdade e apego que está em nosso âmago e nunca se resolve”, continua ele.

Cada vez mais vamos nos dando conta de que é aqui dentro de nós que tudo se resolve, ou não.

O ser humano do jeito que o conhecemos hoje, e acreditamos piamente que esse é o seu funcionamento, passa a vida toda nesses conflitos “normais” e infindáveis. Será que tem que ser assim?

Continuo citando Calligaris: “talvez a gente se apaixone e se separe, sobretudo conforme o ritmo do antigo e inesgotável conflito entre nossas aspirações de navegador solitário e nossa nostalgia de uma fusão na qual, enfim, poderíamos descansar de vez”. O que ele chama de “antigo conflito” e “nostalgia da fusão” nos conduz para as raízes, a origem, de algo que passamos a vida toda repetindo.

Veja bem, o conflito que se põe é entre prender-se, desprender-se, voltar, sair novamente, encontrar, abandonar… Toda a nossa vida segue esse movimento permanente.

Na primeiríssima fase de nossas vidas, vivemos nove meses no “planeta-água”, parasitando o corpo da mãe, vivendo envolto num tipo de pele que era o corpo que nos abrigava. Um casulo protetor.

De repente, não mais que de repente, tudo se rompe. Vai tudo por água abaixo, inclusive a água que nos cercava. O “planeta-ar” vem em seu lugar. Ar é nada. Ar não se sente. Ar é vazio. Cadê tudo que nós tínhamos? Sumiu.

Tudo que era se perdeu. Tudo que me prendia se soltou. Estamos soltos no ar. Cadê todos os barulhos que ouvíamos? Cadê a calefação que nunca falhou? Cadê o doce balanço que nos embalava todo o tempo? Sumiram, de repente.

As últimas pesquisas em neurologia e psiquiatria perinatal que estuda a constituição da vida psíquica dos fetos e recém-nascidos nos informam que nos primeiros três anos de vida o cérebro do ser humano realiza mais conexões neurais do que na idade adulta. faz mais ligações neurais do que pelo resto da sua vida.

Será que o maior corte que recebemos na vida – a saída de um mundo interno para outro externo – não traria consequência imensas? Agora que já se sabe o quanto os bebês sentem, inclusive dor, muita dor (ao nascer, somos hiperalgégicos por não termos ainda inibidores para dor funcionando eficazmente), agora que sabemos das competências de sensibilidade que o ser humano começa a ter já na sétima semana de vida intrauterina, será que poderemos levar mais em conta o sofrimento, a angústia (segundo Lacan) e a agonia (segundo Winnicott) da perda do suporte corporal que era nosso universo?

Éramos parasitas de um corpo que nos é tirado abruptamente. Tem jeito de ser de outro modo?

Essa é a proposta de minha pesquisa sobre “O desmame do corpo da mãe”. Ela deu origem à ONG Bebê Canguru, que tem como objetivo conscientizar as pessoas da imensa necessidade que o bebê tem desse amparo que vai intermediar a saída do “planeta-mãe” para o planeta Terra: a bolsa canguru.

Não temos registro dessa ajuda, dessa dependência para depois construirmos a saída da independência. Simplesmente somos jogados para fora. O que nos leva a passar a vida tentando entrar novamente – o que todo mundo quer é voltar para o útero materno – porque não se aprendeu a gostar de viver com esforço, com movimento próprio.

As questões de prender-se e soltar-se, de sair e voltar, têm suas raízes em um momento inaugural em que as percepções cinestésicas – de tato, calor, ritmo – funcionavam com gigantesca força. É nesse momento que sofremos nada menos que a pior perda da vida. Como não temos o processo de desmame, são só dois movimentos: temos tudo, perdemos tudo. E não conseguimos ao longo de toda vida dar conta de viver essa experiência nas incontáveis vezes que somos chamados a passar por ela.

Não conseguimos ter e não conseguimos perder.

Não conseguimos ficar juntos e nem separados.

Sina de quem não aprendeu a ter e nem a perder no desmame-do-corpo-da-mãe e vai passar a vida toda feito alguém atropelado por um caminhão, tonto, sem rumo, tristemente filosofando: “Onde estou? Quem sou? Para onde vou?”


Artigo originalmente publicado na coluna Divã do Popular, do jornal O Popular, de Goiânia (GO), em 13 de fevereiro de 2015.

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