Eu sou normal?


Esta era uma pergunta muito comum nos consultórios de psicanálise há alguns anos.
 
Assim era traduzida a angústia de se sentir estranho e diferente.
 
Mas, estranho e diferente em relação a quê?
 
Em relação a um padrão, ao jeito que era o ideal que perseguíamos para nos tornar parte de uma igualdade “normal”.
 
No mundo padronizado as pessoas tinham medo de serem diferentes, pois o risco era grande sempre que aparecesse nossa cara, nosso jeito único de ser.
 
Era uma lógica que funcionava desta forma: mostrar-se diferente provocava um risco de desaprovação e consequente exclusão – morte social e morte do sentimento de identidade, pois ela só existe sendo confirmada pelo outro. Esse era o fato terrível: mostre sua diferença e será banido porque o grupo pode ser destruído, esfacelado, pelo diferente.
 
O estranho é que esta pergunta desapareceu nos últimos anos de minha prática. Ninguém mais pergunta se é normal. Eu diria que as pessoas já estão imersas nesse novo mundo que eu chamei em outro artigo de pós-edípico, mesmo que não saibam teorizar sobre o fato. Se assim não fosse, continuariam com a mesma pergunta.
 
As realidades são únicas. Cada um vê o mesmo fato de maneira diferente. As pessoas “viajam na maionese” ou, para usar uma expressão nova, “vivem no Império Brizantino” e tudo bem, é assim que somos.
 
Jacques Alain Miller – o grande analista francês que estabelece os seminários de Lacan – afirma com naturalidade a frase: “Todo mundo é louco, todo mundo delira”.
 
Quando Gilberto Gil e sua filha afirmam numa propaganda que “ser diferente é normal”, eles nada mais fazem do que marcar as novas bases de uma nova era nos modos do laço social, de como as pessoas convivem.
 
Há uma falta de ordem no momento atual que faz com que muitos busquem abrigo em crenças asseguradoras do tipo “vou perguntar ao pastor”. Elas dão a segurança que antes as regras estritas ofereciam cobrando em troca apenas a obediência.
 
Hoje obedecer é mais difícil. Crer cegamente é mais difícil. Há os insistentemente enceguecidos, que não só voltam ao mesmo caminho que se mostrou exaurido como o fazem com a intensidade dos desesperados, agarrando-se à última tábua de salvação.
 
Sem correr para trás assustado, dando conta de usufruir desse nosso tempo com menos amarras, podemos – por exemplo – parar de brigar com o jeito do outro ser. Como mostra a história do marido que, irritado com a “mania” da mulher de gostar tanto do mar, brigava toda a vez que ela começava com o comichão para ir à praia. Era briga na certa porque o marido “não entendia” o porquê da tal necessidade sem pé nem cabeça.
 
Não por acaso – porque só a um sujeito do século 21 ocorreria tal solução –, o filho adolescente vira para o pai e diz: “Pai, o senhor já sabe que está escrito no manual de uso da mamãe para mergulhar em água salgada de 6 em 6 meses que o produto vai funcionar bem. Siga as instruções e para de brigar com a realidade porque a experiência já demonstrou que é assim que funciona”.
 
Nem tudo se entende. Aliás, muito do outro de nós mesmos não se entende mas se pode curtir, rir, mandar ver, seguir e viver. Desta forma também funciona.
 
Hoje pode-se fazer um grupo, sem que ele seja unido numa igualdade artificial e fora de cada um. Podemos estar juntos, unidos por afinidades parciais, situações momentâneas, arranjos oportunos e válidos. Enfim, podemos nos unir pelo que nos toca e nos interessa sem que tenhamos que abdicar do que somos.
 
Nossas esquisitices não são mais pecados contra uma pretensa igualdade. Os seres humanos não vão se destruir se forem diferentes. E, pelo fato de não se mutilarem, vão, isso sim, serem mais felizes e mais amorosamente cuidadores de si, do outro e do mundo que compartilhamos.
 


0 resposta para “Eu sou normal?”

  1. “Hoje obedecer é mais difícil. Crer cegamente é mais difícil.” Esse artigo veio bem a a calhar.Vide o resultado de um mundo que mudou : As Manifestações no Brasil. Parece-me que a psicanálise explica melhor esse acontecimento do que as ciências sociais. Muito esclarecedor!

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