Luciene Godoy //
Quando pequena costumava ouvir com prodigiosa freqüência uma frase atribuída a William Shakespeare dita: “A beleza só é bela quando ingenuamente ignora a si mesma”. Passei toda a minha vida adorando e louvando a tal frase.
Dia desses me peguei de surpresa pensando: então, não saber o que se tem de belo é bom? Então, ignorar as próprias qualidades é uma virtude?
Parece que a busca do saber quase sempre trouxe consequências funestas para o curioso, o ambicioso de conhecimento. Prometeu recebeu de Zeus o castigo de ter seu fígado comido pelos abutres. A cada novo dia, ele, acorrentado a um penhasco, imobilizado e impotente, testemunhava a destruição de suas próprias entranhas. Castigo pior que a morte. O pecado? Ter roubado de Atena a inteligência para compensar todas as fragilidades físicas do ser humano, uma vez que seu irmão, Epimeteu, já havia distribuído entre todos os animais todas as qualidades para a sobrevivência de cada espécie e o homem tinha ficado no desamparo.
Saber é perigoso. Saber dá poder. Será que é esse o perigo do saber? O fato de ele nos conferir poder?
Sim, sem dúvida isso também existe, mas não parece ser esse o espírito da frase em questão. “A beleza só é bela quando ingenuamente ignora a si mesma” é uma mensagem para desencorajar o leitor a se tornar um vaidosopresumido. Será que reconhecer as próprias qualidades sempre torna as pessoas pretensiosas? Mas, por que o ser humano tem que ficar mais feio quando começa a ver que tem qualidades?
Essa história tem mais a ver com uma outra frase: “O dinheiro, quase sempre, empobrece as pessoas”. Dá para expandir a ideia para: “Qualquer qualidade excepcional que alguém tem e passa a perceber torna-o menos do que era na ignorância de sua posse”.
Por que, afinal, “o dinheiro torna as pessoas mais pobres”? Pelo fato de terem a certeza de tê-lo. O inteligente, idem. O bonito, também.
Quando o ser humano passa a ter uma certeza inabalável da posse de algo, ou de alguém, ele deixa de duvidar e de cuidar. Perde a relação com a condição humana que é não ter segurança de nada, já que nem sobre a nossa vida e morte temos comando. A cada passo que dá certo, celebramos e “vamos passear na floresta enquanto seu lobo não vem”. Enquanto a morte, a doença e as perdas, não nos alcançam.
A pobreza toma o lugar da riqueza quando aquele que conquistou algo se torna o “pobre conservador de sua conquista” e passa a ser o vigilante carcereiro das riquezas que tem que manter a qualquer custo. Deixou de ser solto. Deixou de ser livre. Deixou de não saber – condição tão humana. Virou sabe tudo, tem tudo, pode tudo, conquista tudo e aí… vira pobre. Perde a beleza da dúvida e da incerteza.
Vira animal empalhado e fica feio e sem vida. Já tem, já é, já sabe. E, para manter a sua condição imutável, rouba no jogo para fazer de conta que a vida não anda e para se enganar que sua condição está e sempre estará vulnerável. Toda conquista é temporária, é ameaçada, é um presente momentâneo; por mais longa que seja, vai acabar, nem que seja quando acabarem nossas vidas.
Poder se saber belo, endinheirado, brilhante, potente e degustar esses atributos com a modéstia dos que se sabem frágeis, com a gratidão dos que sabem que tudo passa, que o que têm só existirá em seu usufruto e não trancado a sete chaves para que ninguém lhes tire.
Assim, a beleza poderá continuar bela num rosto que se sabe belo, mas também muitas outras coisas e todas não garantidas.
—
Artigo originalmente publicado na coluna Divã do Popular, do jornal O Popular, de Goiânia (GO), em 6 de fevereiro de 2015.