Na teoria psicanalítica lacaniana, chamamos de Outro Primordial o encontro com o desejo dos adultos ao nosso redor – principalmente e normalmente o da mãe, por ser a figura mais presente e, por isso mesmo, mais determinante da nossa vida.
O desejo desse Outro Primordial (que é escrito em maiúscula) não é exatamente o que ele quer da gente, mas sim como ele nos vê, como ele nos interpreta: “Esse menino é tão quietinho”, “Ela vai ser a minha companheirinha de vida”, “Ele tem o jeitinho de médico” etc, etc.
Saímos da infância impregnados do que o Outro “viu” em nós , interpretou de nós. Saímos da infância vestindo a roupa que o Outro nos deu, “sendo” o que o Outro disse que éramos.
É vestido com essa roupa/interpretação dada pelo Outro que viveremos as relações amorosas.
Então, se na infância eu era visto como irresponsável, por exemplo, o meu novo outro vai ser interpretado como sendo o velho Outro, aquele que me viu irresponsável (ou eu interpretei como).
Desta forma, passamos a ser o espelho das projeções da imagem de si que o nosso companheiro tem. Ele nos armará mil armadilhas de forma que o final sempre seja o mesmo: “Você me acha irresponsável”.
Situados que estamos a esta altura do artigo, cabe de novo a pergunta: como não ser o Outro do outro?
Como conseguir sair fora da linha de tiro do nosso amado/a, tentando nos colocar como o Outro de sua infância, o Outro que o formou lhe dizendo quem ele era?
Manobras úteis para que você, sendo o outro do presente, não seja tomado pelo Outro do passado:
1. Quando você for alvejado com afirmações descabidas, descontextualizadas, em momentos em que você já sabe que seu amor entrou no “túnel do tempo”, caia na gargalhada e confirme o absurdo. O sonâmbulo vai ficar chocado.
2. Faça humor negro. Isso vai deslocá-lo da certeza absoluta de que está vivendo hoje o que, na verdade, viveu no passado.
3.E o principal: não reaja em espelho, não faça par, pois se ele/a lhe acusa e você se sente acusado/a (isso é ser espelho), você confirma o ato do sonâmbulo. O contrário de se fazer espelho é se fazer um vazio: quando o outro lhe acusa e você faz outra coisa, dá atenção a outro detalhe, você o desloca de sua certeza.
Digo mais: tente com todas as suas forças não ser arrastado pela piração do amado/a. Tente com todas as forças não ser o espelho que reflete e confirma a viagem na maionese do outro.
Abaixo a neurose e viva a vida presente!
Traga o presente, não avalize o passado, não faça render, corte, saia da cena, não fale, faça outra coisa. Mire para outro rumo e as coisas tenderão a mudar de direção.
Porém, o grande instrumento para se conseguir não ser o Outro do nosso outro é conseguir se distanciar adequadamente: às vezes, um sutil passo para o lado e você deixa a batata quente (ou seja, a imagem falsa) que o outro lhe arremessa se esborrachar no chão, não tendo encontrado suporte para enganchar em você por causa da sua reação.
Não seja o cabide das projeções do outro.
Viva o presente e o passado virará passado. Não deixe o outro lhe enfiar goela abaixo as interpretações que ele construiu do mundo, da vida e do que as pessoas são.
Desconfirme a fantasia dele/a e tenha a presença de espírito para não ser pego na rede das certezas neuróticas de seu amor.
Ao não ser o eco da história do seu/sua bem amado/a, você pode, desta forma, inventar um novo discurso no qual vocês dois viverão a sua vida presente e não a terrível e trágica repetição do que foi bom ou ruim.
Que o eco vire um novo discurso e invenção. Assim a vida sai da repetição mortífera e fica tão mais divertida!