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A vida passa e eu acho graça

O mundo está cheio de gente que olha o presente, mas vê o passado. Passa a vida andando de costas, com os olhos voltados para o que foi e não para o que é. Quando chega a falar algo do presente, olhe com mais atenção e você verá que por baixo tem sempre alguma cobrança, algum lamento, algo visando o passado.

 

Somos, é claro, feitos de passado, mas um passado que se refaz no presente. Quando remoemos dores e significações do passado estamos parados lá. Esperando que algo seja reparado, como um mecânico que venha concertar algo, para que, só então, a vida possa caminhar bem dali para frente.

 

O que, afinal, conseguimos ao entrar na fila de pires na mão esperando o reparo? Apenas manter fixo o nosso olhar lá pra aquelas bandas, pra aquele rumo e não ver a vida passando diante da gente, oferecendo seus pratos e a gente olhando os pratos embolorados do passado que a gente queria ter comido. Podemos ainda nos grudar em algo que tivemos e não temos mais, mas não aceitamos a perda e insistimos a todo custo em continuar tendo o prato que já se foi.

 

É como aquela história da garagem de gaveta que só existe em nossa cabeça. Parece que a vida não anda, que a gente não se sente bem e feliz porque sempre tem alguém ou algo impedindo a nossa saída. A realidade é que estamos livres, nada nos impede de sair, caminhar ou degustar a comida fresquinha do dia.

 

Se o seu passado só está servindo de justificativa para as suas dificuldades presentes que estão sem cuidado, o cotidiano vai ficando um inferno. O dono da casa viajou para outra dimensão, outro mundo, como naquele seriado antigo O Túnel do Tempo, e a casa do presente está deixada às traças.

 

Uai! E o dono da casa do presente que não é cuidada está viajando pra onde? Pra novas plagas, abrindo novos territórios, aprendendo algo útil?

 

Nada disso. Ele está viajando para o passado a fim de tentar pegar o que não teve.

 

Dessa viagem ele não traz novos objetos e descobertas.

 

Dessa viagem ele traz bolor, rancor, estagnação e o seu fruto maior: a queixa e a infelicidade.

 

Mas, veja bem, não vamos crucificar quem não quer viver o melhor de hoje porque quer ser vítima. Ser justificado pelo passado também tem seus ganhos inquestionáveis.

 

Há o que Freud chama de “o benefício secundário da neurose”. Gente sempre doentinha, que todos ao redor sabem que se agarra à doença e que, no fundo, não quer se curar, tem seus ganhos.

 

Gente sempre mal humorada, que deixa aquele clima pesado e tem o poder de ver todas as carinhas ao seu redor amedrontadas, feito “galinha que queimou o pé”, com medo de mais uma cena, também tem seus ganhos.

 

Eles ganham a compaixão e a assistência, ou a sujeição dos outros.

 

Para vivermos a construção presente sem a desculpa do passado, corremos um risco grande de sermos felizes, o que é assustador, porque felicidade é sair da normalidade, é suportar a nossa diferença e as nossas qualidades, e isso incomoda muita gente.

 

Já perceberam que o sucesso – e ser feliz é um deles (talvez o maior) – é solitário e que o sofrimento, este sim, é solidário?

 

Ok, se a tragédia chega e todos se juntam para ajudar, essa é, a meu ver, uma das 7 maravilhas subjetivas do ser humano. Mas é pura burrice ficar reeditando uma dor para obter os benefícios da aceitação dos outros. Há a deliciosa possibilidade de se ter também o prazer de, sozinho, curtir o que se é, sem o aval do outro.

 

A vida passa, queira você ou não. Se a sua tiver a graça que você puser nela, bom pra você, porque senão ela passará sem graça mesmo, e ninguém vai lhe salvar desse destino – construído por você, apaixonado pelo passado, adorando comida embolorada.

 

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