A melancolia e a mãe

Melancolia (Edvard Munch, 1899)

Luciene Godoy

Ou deveria eu dizer: o melancolia e a mãe?

Sim, porque aqui refiro-me ao Melancolia, aquele planeta que destrói o nosso indefeso planeta Terra no filme de Lars Von Trier ( 2011). Era possível ver a violência do impacto estampada nos rostos atordoados dos que saiam do cinema.

Parecia que todos havíamos explodido também. Ao descermos as escadas cada qual olha para o outro como que dizendo: “Que bom que ainda estamos aqui. Que bom que o nosso mundo não acabou.”

Fiquei então pensando que algo tão destrutivo e visível como aquele planeta poderia estar, no filme, representando uma destrutividade tão grande quanto, só que no mundo subjetivo da personagem Justine (Kirsten Dunst).

Se cada um de nós pode ser visto como um mundo único, o planeta Justine, no dia de seu casamento, foi explodido, claro que por um outro, há muitos anos em rota de colisão com o dela.

Morte anunciada.

O planeta destruidor é a própria mãe e o pai.

Justine tem uma mãe que não foi mãe. Por isso ela sofre a fome de ter o que não teve jamais, e é destruída pela melancolia, uma tristeza infinita de não receber no presente – veja a cena dos discursos do casamento – nem na origem, o amor tão necessário para seguirmos sozinhos.

Justine é só e sempre foi. As pernas pesadas, amarradas com fios de lã, não a levarão a uma vida interna feliz.

Na festa de seu casamento, a destruída Justine, tira o seu lindo vestido de noiva e vai para a banheira com a mãe. Volta ao útero, tentando mais uma vez extrair paz daquela relação vazia. Depois vai procurar o pai. O pai, uma ausência pura, que não a reconhece, e que, mais uma vez, não espera por ela. De novo…vazio.

A relação com a mãe é a mais vital e fundamental de nossas vidas. Na construção de nossa história com ela estão as pedras angulares do que viveremos para o resto de nossas vidas.

No inicio da vida precisamos de olhar, aconchego e reconhecimento, mas depois, e não menos importante, precisamos nos libertar, cavar nosso próprio estilo, saber quem somos para além dos que nos construíram.

Justine não tinha construção, tinha vazio.

Tinha beleza, juventude, dinheiro, talento, um lindo homem apaixonado por ela. Quem ousaria pedir mais? A lista está completa. Tudo para uma mulher ser feliz!

Tudo menos base, alicerce, mãe. E por isso, Justine, no dia do seu triunfo de mulher, rui.

Rui como que abalroada por um planeta destruidor, só que este, o dela, não vem de outro lugar senão de dentro dela mesma.

Melancholia (Lars Von Trier, 2011)


Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 15 de setembro de 2011.

Este post tem 2 comentários

  1. A pedido da Luciene, vou fazer um pequeno comentário sobre a escolha das imagens que complementam o artigo. A ideia é que essa seja uma prática permanente a partir de agora, tendo por objetivo incentivar a apreciação artística e usufruir mais e melhor da riqueza concentrada pela pintura, pela fotografia, pelo cinema…

    Vou começar pelo final: postar a cena do filme “Melancholia” é uma escolha óbvia para esse caso, já que o texto se refere diretamente à obra cinematográfica. Acima, a foto mostra a personagem Justine vestida de noiva e deitada sobre a água, representando, talvez, a ideia de alguém que se entrega resignadamente à morte.

    Fiel à proposta do site, no entanto, preferi investir inicialmente na reprodução de um quadro de Edvard Munch sobre o mesmo tema: a melancolia. Nele, o artista retrata a irmã Laura. Ela, que foi diagnosticada como “histérica”, aparece no quadro com olhar vazio e resignado, como a Justine de Lars Von Trier. As paredes e a mesa parecem comprimir Laura a um canto da casa, isolando-a do mundo exterior emoldurado pela janela. As linhas da mesa convergem para um vaso com duas flores. Essas duas flores teriam um significado? Não sei. Mas especulo: ainda jovem, Munch sofreu a perda da mãe e de uma das irmãs, ambas abatidas pela tuberculose.

    Ele também adoeceu, tendo sido diagnosticado como “neurastênico” (há quem defenda hoje que se tratava de “transtorno bipolar”). Tratou-se na França, na Suíça e, de volta à Noruega, sua terra natal, chegou a ser internado numa clínica de Copenhagen. Sua pintura refletiu a angústia relacionada a temas como morte, melancolia, solidão e saudade. Munch é mundialmente conhecido como o autor de “O Grito”, que se tornou ícone do sofrimento existencial do homem. As formas irregulares do quadro exemplificam a essência do movimento expressionista: uma arte que revela o estado subjetivo do artista e de seus personagens.

    Boa apreciação!

  2. João Eduardo

    Percebo também outra coisa, importante no processo de aniquilação de Justine.
    Se na origem de sua vida falta um olhar que a localize neste mundo como um ser desejado, sobram bocas para exigir nela a satisfação de desejos de outros.
    Justine é o tempo todo exortada a ser feliz.
    Dizem repetidamente que a única coisa que desejam dela é a sua felicidade.
    Felicidade, na verdade, deles, os famintos, que acabam por depletar as já escassas reservas de libido da personagem.
    Só lhe sobra a ruína, a colisão com este mundo alienígena ao seu próprio ser, palco de personagens estranhos.
    Justine está tranquila frente ao final de tudo o que conhecemos.
    Para ela, tal catástrofe já havia acontecido.

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