Luciene Godoy //
Ultimamente, tenho recebido em meu consultório mães e pais de crianças – veja bem, não de “aborrecentes” (perdoe-me o interessado no assunto, fica aqui a promessa de dar o meu viés muito mais simpático a essa fase da vida) – que se sentem perdidos e impotentes diante do que suas crianças fazem. Elas os deixam completamente deslocados porque em suas próprias infâncias aquele comportamento era impensável.
Como sabemos, o ser humano não é abelha, que a cada geração reproduz-se exatamente da mesma forma. Nós, que recriamos o mundo a cada geração, temos o chamado “choque de gerações”.
Não é choque, é mudança de tipo de relação social, que sai do modelo vertical – relações de comando e poder – para um modelo horizontal, em rede, com a troca de informação de um para o outro e não do líder, pai, mãe, donos da verdade, para os pobres cidadãos comuns. Hoje, o cidadão comum cada vez mais se empodera pelo acesso ao saber que vem da informação “no ar” e não nas cátedras.
Note bem: o mundo dos adultos mudou e o das crianças, que se nutrem do que esses adultos lhes dão, também mudou.
Hoje, o adulto valoriza muito mais a criança. Claro que a sociedade de consumo se apropria disso e tenta transformar esse valor em um empurrão para o consumo.
Se o mundo não é calcado na obediência cega a um líder ou a regras, isso quer dizer que a criança não vai se curvar a uma posição, a um título, mas a uma competência. Não é porque o pai é pai, mas por quem ele é. É isso que significa estarmos num mundo de relações horizontais. Ele é mais justo.
Não adianta ter um título de doutor ou um anel no dedo, ou nome de pai ou mãe; é a competência naquilo que se diz ser ou fazer que pesa. É ser coerente com o que se diz.
Não vale mais a mãe irritada falar para o filho se acalmar e culpá-lo de ser agitado. Nós, adultos, “somos” o alimento emocional e comportamental dos pequenos. Por isso, os grandes centros de estudos da primeira infância estão dando ênfase na ajuda aos pais para se transformarem também enquanto pais, pois o modelo de sua própria infância simplesmente virou de cabeça para baixo.
Tem também muita gente preocupada dizendo que as crianças estão deixando de viver o lúdico e vivendo demais a vida de adulto. Perguntinha: a criança aprende brincando de quê? Brincando de ser adulto, ora bolas! Agucemos o nosso olhar e poderemos ver que essas atividades do dia a dia que dizemos serem coisas de adultos, com responsabilidades demais, aula disso, aula daquilo, tal e tal compromisso, até festa de aniversário dos amiguinhos que se torna “um compromisso que é um saco”, podem der ser vividos de forma lúdica.
Estudar, fazer esportes e aprender línguas podem ser deliciosos. Depende do estresse ou da leveza com qual são vividos.
Porém, o mais bonito é o que Lacan diz: que ser criança é ter ainda o frescor de um ser em formação que não está engessado pela expectativa dos outros. A criança fala coisas inesperadas, faz conexões profundamente aguçadas a respeito de fatos que nunca tínhamos visto daquela maneira. Ela renova o mundo com seu olhar.
Triste é ver a criança que não brinca de ser adulto, que “é” um adulto porque não faz para seu prazer e sim para o olhar dos outros.
Lacan nos convida, no fim de uma análise, a voltarmos a ser crianças, a termos um olhar curioso para o mundo, a inventar e usufruir do prazer de sermos como queremos e não como os outros querem. É um chamado para “ir além do Pai em tendo se valido dele”, quer dizer, ultrapassar as regras da cultura , mas sabendo segui-las, sabendo viver em grupo e pensar na coletividade.
Ser responsável não é só coisa de adulto, testemunhamos hoje crianças ativas e conscientes. Ser lúdico não é só coisa de criança. Tem muito adulto livre, leve e solto.
Podemos ser crianças brincando de adultos e adultos brincando de crianças e, assim, sermos livres e felizes, sustentando nossas escolhas e dando conta de nossas vidas.
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Artigo originalmente publicado no jornal O Popular, de Goiânia (GO), em 8 de outubro de 2015.