Luciene Godoy //
Será que nós já nascemos com “eu”? Curto e grosso, não. Não nascemos com um “eu”. Então, quando é que ele nasce?
Ops! Será que o “eu” nasce? Será que ele é desenvolvido? Será que aparece de repente? Você já pensou no assunto? Será que o meu “eu” é quem eu sou? Muitas e interessantíssimas interrogações.
Nós não nascemos com um “eu”, não. Nascemos, isto sim, com o corpo biológico e prematuro, ainda por cima. Se você duvida, dê uma lida na teoria evolutiva que você vai ver que, com o advento da bipedia – o ser humano assumir a posição de marcha sobre as duas pernas –, tivemos que fazer uma adaptação em nossa espécie.
Como a pélvis da fêmea se estreitou, os bebês tiveram que começar a nascer antes do tempo para que mãe e bebê pudessem sobreviver. Isso aconteceu entre sete e quatro milhões de anos atrás.
A título de curiosidade, muitos estudiosos, dentre eles Leakey (1997), afirmam que, para atingirmos a condição do mamífero que somos, deveríamos nascer com 21 meses de gestação, ou seja, com um ano de idade após o nascimento.
E o “eu”, o que tem a ver com tudo isso?
Segundo Lacan, nosso nascimento precoce, que ele chama de Complexo do Desmame, nos relega a viver os primeiros seis meses de vida sem termos a percepção do nosso corpo, pois o inacabamento neuronal nos dá a sensação de corpo fragmentado.
Veja só, nascemos incompletos, ainda em acabamento, como uma casa que já tem alguns fios, mas ainda precisa de outros. Que tem canos colocados, mas carece de algumas conexões para o funcionamento geral. Pode ser que uma parte do telhado ainda esteja incompleta, nos deixando meio expostos e desamparados.
Aos seis meses, nossa visão já consegue focar com justeza e nós, bebês, passamos a ver o que antes não tinha muita forma.
Quando o bebê “vê” a mãe, figura já muito presente, ele vai tomar a imagem dela por si mesmo. Depois disso, demora mais de um ano para compreender que o “eu” está aqui nesse corpo e não no outro.
Sim, meu querido, o primeiro “eu” é lá, no espelho que é o corpo do outro. Lacan chama este momento de “Estádio do espelho”. É por isso que nos afetamos tanto com o que o outro é e faz. Nosso primeiro “eu” já foi o outro.
Mas, o título do artigo fala de “eus” no plural. Mais essa agora: será que temos mais de um “eu”?
É, temos, sim. É um “eu” primitivo que funciona antes do “eu especular” – redundância porque esse “eu” que já conhecemos é sempre especular – é sempre na imagem do outro. O segundo “eu”, na verdade o primeiro, que lhe apresento agora é o que o psicanalista francês Didier Anzier chama de “eu-pele”.
É que a pele é o nosso primeiro grande sentido que nos permite nos situarmos. O primeiro lugar de troca com o outro. A própria visão que tanto nos orienta depois dos seis meses é um desdobramento do tato, segundo muitos estudiosos. Ou seja, o primeiro “eu” que nos orienta e nos situa na vida vem do sentir. Do sentir a pele do outro e, a partir disso, ter a sensação de sua própria pele, de seus próprios limites, de seu próprio corpo.
Se o nosso “eu-pele” for bem constituído num contato pele a pele intenso nos primeiros meses de vida, o nosso “eu-espelho” – que é um “eu-no-outro” – não vai ficar tão violentamente predominante em nossas vidas. Teremos mais paz dentro do nosso corpo e menos dependência e medo da não aprovação do outro. Moraremos mais no “eu-pele” quentinho, gostoso e nosso, do que no sapato apertado que é o corpo do outro.
Daí poderemos dizer: “Sai do espelho que está lá e entra no seu corpo que ele te pertence!”
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Artigo originalmente publicado no jornal O Popular, de Goiânia (GO), em 10 de setembro de 2015.
Perfeita a forma acessível e simples de passar algo complexo, valioso é tão pertinente…!