“De perto, ninguém é normal”, cantou nosso querido poeta Caetano Veloso num tempo em que ser normal significava dizer “ser saudável”. Ser igual ao esperado.
De perto, todo mundo mostra o quão doente é emocionalmente. De perto, vemos a excessiva preocupação de quem achávamos tão tranquilo ou a pão-duragem daquele que nos passava a impressão de generoso.
O homem tão forte, de perto, fica infantil em suas exigências prepotentes. A mulher tão delicada e prestativa vira uma insistente enfermeira, professora ou mãe-de-adulto de plantão (e nada mais triste e anacrônico do que mãe-de-adulto).
Isso existe? Existe. De fato, existe.
Por isso, além de doente – o não-normal do Caetano –, todos ficam tão feios de perto… Tão sem brilho, tão sem áurea, tão sem magia.
De perto, todo mundo é feio. Não tem dúvida, é fato.
Tem um mistério nessa situação, porém. Conheci um estudante de direito de uns 30 anos que se confessava muito intrigado com um certo fato que se repetia em sua vida. Uma colega de curso lhe fazia queixas sobre o marido: “Aquele traste, aquele sem noção e mal cuidado”. Alguns colegas homens que iam mais ou menos pelo mesmo caminho afirmavam que suas mulheres eram cansativas e enfadonhas, que já nem tinham mais vontade de ficar perto delas. Mas quando, por uma ou outra razão, chegava a conhecer o cônjuge mal falado, levava um choque.
Geralmente, era um cara super gente boa, agradável, bem apessoado, com tudo para agradar o gênero feminino. A mulher, idem. Muitas das vezes bonita, bem cuidada, bem humorada e cheia de vida.
E essa conta não fechava, não só não fechava como nem chegava perto do que lhe tinha sido dito. É que ele, ingênuo, nem desconfiava de que se tratava de um caso de “intimidade indecente”, “intimidade deformadora e desrespeitosa”. Se chega perto, começa a estragar tudo. Fica muito tempo junto, o que é bonito começa a enfeiar.
Por quê? Porque as pessoas que ficam muito perto da gente viram nosso “eu”. E o “eu” é visto por nós como muito feio lá no mais fundo de nossa alma. Porque o “eu” não é perfeito e para o narcisismo, a relação que passa pelo espelho, tudo que não é perfeito é feio.
E ainda tem o “supereu”, que não é imagem, mas é regra internalizada, e regra que exige também perfeição. Então ele nos cobra e critica o tempo todo apontando todas as mancadas que damos, e, já que mancamos para caminhar a cada passo, pois ninguém tem pernas absolutamente simétricas, falhamos a cada passo e isso não tem perdão para nós mesmos.
Podemos disfarçar e buscar a absolvição do outro, dos elogios tão cobiçados que vão nos arrancar do poço do desvalor. Mas as estratégias têm vida curta, pois logo na esquina seguinte já estamos nos cobrando de mais alguma pisada na bola.
Então é isso: quem chega perto vai ficando feio porque o confundimos com o nosso “eu” feio e maltratado. Tentamos fugir dele nos distraindo com diversões, belezas, surpresas que nos arrancam momentaneamente de nosso sentimento de menos valia.
O “eu” é uma instância projetiva, é um espelho. Nós só nos vemos nos olhando no espelho – superfície refletora – ou para o olho de outra pessoa que nos diz, pela sua reação, como estamos na foto.
Por isso, o outro que se torna próximo vira “eu”. Quem é que, ao olhar sua imagem refletida no espelho, vai dizer que aquela imagem é do outro? Vai dizer, isso sim, que aquela imagem é de si mesmo e pode tomá-la facilmente pelo seu “eu feio” do qual o outro – mesmo tendo as qualidades que tiver – vai ser o reflexo.
O reflexo de alguém que, se sentindo feio, dirá que é o outro, o feio que está por perto.
E ele? Ah, ele continuará lindo! Enganando a si mesmo que não se acha feio.
Feio é o outro.