Identidade mutante

Animal locomotion (Eadweard Muybridge, 1880s) - www.metmuseum.org
Animal locomotion (Eadweard Muybridge, 1880s) – www.metmuseum.org

Luciene Godoy //

A identidade é o chão de todos os seres humanos. É o chão sobre o qual crescemos e frutificamos. É o nome que damos ao fato de nos reconhecermos existindo.

Segundo a bíblia, fomos feitos com o pó da terra. Quando Deus soprou em nossas narinas o sopro da vida, nos tornamos seres viventes. Nessa versão, fomos feitos de terra e ar (terra = raiz, solidez, carne; ar = transcendência, movimento e criatividade). Somos chão e somos ar, nossas identidades primeiras.

Depois nos tornamos muitas identidades – identidade caleidoscópica, bela e mutante imagem que se vê. Só nos reconhecemos no movimento, sem as referências externas, se tivermos o nosso corpo próprio, se sentirmos que existimos em cada situação, se percebemos nossa identidade.

Se você está confuso, não diga que não sabe quem é. Encarne a realidade daquele momento que é a de um ser em estado confuso. Estar mudando, estar estranho e estar num lugar desconhecido são todos estados, identidades que temos no viver essas situações.

“O urubu-caçador dorme na perna do vento”, diz o poeta Tom Jobim. O ar move, o urubu dorme. Dorme porque tem as garras firmemente fincadas na perna do vento. Nos firmamos em algo indizível em nós mesmos, o que nos dá chão no vento, a tal identidade caleidoscópica, feita no movimento, com combinações variadas – que pode ser muita coisa sem se perder de si.

O ar nos salva do chão quando ele, ao invés de oferecer firmeza, se mostra movediço e traiçoeiro. Tem abismos e pântanos. Não há segurança total no chão firme. Terremotos vêm do chão, da água vêm os maremotos e do ar os tufões. Somos ameaçados pelos três elementos, mas todos passam. E as hecatombes internas que fazem com que nos percamos de nossa identidade identidade? Dessa não temos jeito de fugir.

O chão é quem somos, nossa identidade, e ao mesmo tempo a realidade sobre a qual caminhamos. Escolhemos onde pisar? Claro que sim. Escolhemos ser quem somos? A resposta é a mesma.

Fomos feitos do barro do outro, mas somos mutantes. Nascemos, crescemos e nos transformamos. Saber-se mutante, saber-se só e único. Saber-se um ser “trocante”. Vivemos de nossas trocas com o outro – simbioses produtivas, não parasitismos mutilantes.

Sós, mas muito bem acompanhados por nós mesmos e os que escolhemos deixar entrar em nossas vidas. Sós, porque não entramos na pele do outro, no corpo dele, como muitas vezes tentamos, para adivinhar-lhe os pensamentos e articularmos respostas que supomos ser o que querem.

Impossível! Não se sabe nunca o que emociona intimamente alguém e quando isso acontece. Não adianta guardar a receita para o futuro, pois diante de outras circunstâncias o que causou emoção antes já não mais produzirá a mesma resposta.

Não sabemos de antemão nem de nós. Sentimo-nos a cada instante. Pensamos que agiríamos de tal ou tal forma e na hora em que estamos dentro da cena aparece um outro “eu”, um “eu” que nos surpreende. Que bom! Não se assuste, é sinal de vida e saúde.

Quando parecemos sempre os mesmos estamos na “doença da repetição” – marasmo criado para não deixar a vida passar e correr o risco de não dar conta de ir atrás. Então habilmente “fazemos a vida parar” fingindo que nada muda nunca.

Vivemos sós, com os outros. Trocamos, criamos, sentimos prazer. Nos misturarmos, sermos capturados e nos tornarmos prisioneiros do que veem em nós só se quisermos abrir mão de sentir de forma dinâmica quem somos e passarmos a perguntar para o outro.

O outro não é meu documento de identidade. Identidade caleidoscópica se situa a cada momento em cada situação. É divertido, vivo e eficaz.

Estranhando a palavra eficaz, que não rima com divertido? Eficaz porque nos dá a consistência – sempre temporária, pois vai mudar, mas firme o suficiente – para nos fazer “seguros de nós” a cada passo.

Viver no movimento e ao mesmo tempo na segurança de dormir na perna do vento é possível, se estiver lastreado numa identidade flexível e mutante.


Artigo originalmente publicado no jornal O Popular, de Goiânia (GO), em 23 de julho de 2015.

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