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"Morning Sun", de Edward Hopper (1952)

Vírus e vida

Luciene Godoy //

A distância entre os corpos exacerba nossas solidões subjetivas. Sempre fomos sós – fato facilmente negado em uma vida de turbilhão, mas que agora se encarna, se encrava em nós, deslizando sob a nossa pele, nos invadindo, nos levando a um sozinho que não queríamos.

O impedimento de tocar o corpo do outro, de usar formas habituais de manejar, veja só, a ameaça que o outro também é em nossas vidas, poderiam ter efeitos desorganizadores num psiquismo já habituado aos rituais de trocas sociais que temos.

Estarmos desconectados, distanciados uns dos outros, provoca um grande sentimento de desamparo. Conectados ao outro nos sentimos protegidos e seguros.  Desconectados nos sentimos expulsos, enxotados, sós e abandonados. O medo do desamparo é um medo atávico e o maior de todos. É visceral, nos deixa nus, sem proteção, sem chão.

E agora, em meio a uma pandemia de proporções planetárias, fomos forçados a mergulhar em formas de separação nunca experimentadas antes. Não podemos apertar as mãos, abraçar e beijar. Também nos está impedida a proximidade corporal de grandes grupos como as torcidas e os grandes shows que nos dá, não duvidem, uma enorme sensação de pertencimento e de potência.

Somos mamíferos cuja maior necessidade, paradoxalmente, não é mamar, mas estarmos juntos, para ser cuidados, não só no alimentar, mas para nos situarmos, sentir que existimos e que não vamos desaparecer. São sensações de primitivo abandono que são trazidas à baila nesse momento de separação, que deflagra o medo do desamparo provocado pela desconexão, que é um medo ligado à sensação de perigo de morte.

Temos mostrado que somos capazes de nos manter conectados de impensáveis maneiras, de criar – e isso, os cidadãos comuns – soluções engenhosas para os pequenos e grandes desafios que surgiram da noite para o dia nessa nova forma de existir que criamos em poucos dias.

Cantamos juntos, estudamos juntos, inventamos juntos, nos fortalecemos mutuamente, nos cuidamos de maneiras diferentes, tudo isso sem estarmos juntos; talvez seja melhor dizer que inventamos novas maneiras de nos juntarmos.

Estamos, sim, reagindo como quem está aprendendo e sentindo, na própria pele, com uma ameaça que bate diariamente às nossas portas – dos que se permitem ver o que está acontecendo, e são muitos, felizmente. Claro que o mais feio como o mais belo de cada um aparece em situações de grande risco. E isso não está sendo diferente agora.

Mas convenhamos, o belo está sobressaindo. E acima de tudo, esta situação abriu instantaneamente um espaço de não-saber, de espanto em que muita gente pode descobrir de maneira pequenina o quanto é capaz de cuidar de si e dos outros, de se comunicar e de inventar modos de viver.

Por causa desse vírus, inventamos uma nova forma de união separada. Uma des-união que também faz a nossa força de Homo sapiens.

Hoje, como raça, somos mais unidos do que antes, de um outro jeito, e isso nos protege a todos.

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Publicado originalmente no jornal O Popular em 5 de maio de 2020.

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