A uva e o ser humano

À La Mie (Henri Toulouse Lautrec, 1891)

Luciene Godoy

Seria muito absurdo afirmar que somos como a uva, o resultado de todas as condições nas quais nascemos e fomos criados?

Com a uva, se choveu, se fez sol, o quanto e quando – produz-se um resultado. O mesmo se dá com o ser humano, ele é o produto de ocorrências externas, contextualizadas, relacionais. O sujeito é produzido pelo outro: se alguém nasceu ou morreu em tal momento de sua vida, se ganhou ou perdeu, se teve abundancia ou falta e em que momento específico, vai gerar um sujeito com tais ou tais características – como é com a uva.

O que produz uma uva de qualidade, cheia de sabores e texturas, são as adversidades, as diferenças, as oscilações e pulsações pelas quais passou – como no ser humano.

Uma uva cheia de nuances produz um vinho rico, também ele cheio de nuances. Uma vida cheia de acontecimentos contrastantes produz um sujeito idem.

No entanto, podemos pensar, como equivocadamente se faz, que o sofrimento é o que enriquece o ser humano. Não é exatamente isso. O que digo é que o aprendizado, a absorção, a integração do que foi visto, percebido e vivido é que enriquece.

Na neurose não se vê, portanto, não se sai do lugar. Não se vive muitas experiências. Não se tem diversidade, só repetição e pobreza. Ou seja, os fatores externos só nos enriquecem se forem percebidos, e se tornado uma significação a mais para nós. Não, não é o sofrimento, é o olhar quando vê e acrescenta.

Mas, e afinal, a uva e o ser humano são mesmo iguais? Não tem diferença?

Tem, e bem poética. A uva transformada em vinho, não pode beber a si mesma, o ser humano, ao contrário pode, e, na verdade, não faz outra coisa na vida a não ser beber a si mesmo. Beber-se… Viver sentindo o tempo todo o que se é.

Vivemos inebriados pelo vinho delicioso que somos ou insuportavelmente desgostosos com o vinho amargo, azedo, sem gosto que bebemos sem cessar.

Freud nos diz que a vida (libido) é um vinho que nos é dado a beber todos os dias, se não vivermos o momento, se não sorvermos naquele dia, naquela hora, ele avinagra,e, mesmo assim, tem que ser consumida, adoecendo o pobre sujeito.

Pois digo que o vinho do qual Freud fala não é simplesmente a vida, mas nós mesmos, os dias que passamos com nós mesmos, nos sabendo ser como somos, nos sentindo, nos amando, nos odiando.

No dizer de Lacan: “Coma o seu dasein” – coma o seu ser. Ou, como digo, beba-se, se encante, se enoje, se ame, se felicite, se cobre, enfim, viva bem ou viva mal com o que você bebe de você mesmo.

Não há outra possibilidade além dessa. Beba, o tempo todo, desse vinho que você é.


Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 7 de julho de 2011.

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