Você se lembra de que o cúmulo da audácia de jovens de uma geração atrás era roubar fruta nos quintais das redondezas?
Era desta forma que testávamos os nossos limites, a nossa capacidade de atuar no mundo. A capacidade de transgredir, de impor nossa vontade, num faz-de-conta que está lesando o outro. Fazíamos isso para sentir alguma potência de interferir no mundo dos adultos, de sermos “mais fortes” do que eles. De desdenhar de suas cercas e de seus portões.
Era uma brincadeira séria. Brincadeira de colocar à prova as fronteiras do que seria possível desrespeitar e ainda ter algum ganho: diversão, comer o fruto proibido, dar conta de arriscar.
Existe um fenômeno psicológico que se passa com a criança no fim do primeiro ano de vida. Ela ataca a mãe para testar a realidade. Se a mãe não faz nada, a criança sente que ela nada provocou; se, ao contrário, a reação da mãe é por demais acentuada, a criança pode sentir que é destrutiva. A posição frutífera é sobreviver à agressão, mostrando, desta forma, que potência é diferente de destruição.
Voltemos ao nosso mundo atual. Um mundo que confere cada vez mais poder ao indivíduo comum.
O que temos visto são jovens “testando” seus limites de forma cada vez mais violenta: matando estranhos e parentes, incendiando escolas… E os pais, atônitos, se perguntam se deveriam castigar ou ignorar seus filhos.
O “certo” e o “errado” não respondem mais, a priori, às questões do nosso tempo. Saímos da organização social em que funcionavam as respostas padronizadas e hoje temos de, a cada momento e de forma contextualizada, decidirmos o que é certo ou errado naquela circunstância. O mundo evoluiu e caminhou nessa direção.
Tanto que, neste mesmo momento em que vivemos gestos de agressividade inusitada, vemos também jovens inventando formas de interferir no mundo, de redesenhá-lo, de colocá-lo mais a seu gosto. Eles nos surpreendem pela ousadia e pela autonomia com que o fazem.
Conheci um grupo de jovens organizados espontaneamente que, ao invés de agredirem para mostrar seu desacordo com o mundo herdado de seus pais, ao invés mesmo de roubarem fruta no quintal do vizinho, vão de casa em casa pegando donativos e tomando para si a responsabilidade de distribuir livros, roupas, material escolar… E não só, mas de estudar e organizar a casa de quem receber os objetos. Doam objetos, mas também o conhecimento prático e intelectual que sua posição social privilegiada lhes deu.
Renovar o mundo humano a cada nova geração é um enorme desafio. Desafio de organizar outros modos de distribuição de bens e de conhecimento.
É uma aventura. É divertido. É um delicioso exercício de potência.
O mesmo poder que temos hoje na ponta dos dedos para destruir temos também para construir.
Construir e amar também dão potência. O prazer de se saber forte, capaz de fazer acontecer.
Que diferença pode contar na hora da escolha? Que esse jovem aprendeu ou não a amar o humano, amar o outro, amar a si mesmo.
Enquanto estivermos marcados pela necessidade de perfeição para sermos amados, estaremos impossibilitados de gostarmos do que vemos em nós, que necessariamente é imperfeito, feio aos olhos de um mundo que não aceita a diferença como bela.
Se não gostamos de nós, se o mundo não nos vê e aceita, não gostaremos desse mundo. Não teremos uma relação de amor com ele.
Já se amamos, queremos construir – assim como cuidamos bem de nossos amores. Nesse caso, o nosso objeto de amor será nada mais nada menos do que o mundo inteiro com tudo o que há nele.
Como me disse certa vez uma analisante apaixonada: “Quero beijar as árvores, o céu, todo mundo na rua”. Ela estava, sim, apaixonada por um rapaz, mas também estava apaixonada pelo mundo!