Acho que todo mundo se pergunta por que é tão comum uma relação começar linda, alegre, fortalecedora, deliciosa e depois azedar.
Por que as relações começam acrescentando, enriquecendo e depois de certo tempo passam a nos dividir, diminuir e cercear? Será essa uma doença incurável do amor? O destino inelutável de todo amor (não ser de amores como Romeu e Julieta, Love Story ou Titanic, em que a morte separa o casal antes que a doença estrague o que era bom?).
Ai, ai, ai, dá até preguiça de começar… mas, vamos lá!
É que as relações humanas, segundo Lacan, são vividas em três registros (contexto em que se faz um proferimento): real, simbólico e imaginário.
Quando uma relação se inicia cada qual fala de si, se apresenta, conta sua história, diz como é, do que gosta, dos projetos que tem – estamos no simbólico. O outro lado escuta porque quer saber do amado. Quer saber de tudo. Quer entender, trocar, construir.
Depois que tem, quer manter. Aí o bicho começa a pegar porque, da troca de ideias, da criação de mundos melhores, o mote da relação passa a ser a tentativa de parar, fixar o outro para não ter mudanças, para a pessoa se sentir segura – aí estamos no imaginário, que é a relação narcísica, aquela em que o outro é minha posse, eu sou dono do outro.
Existem dois tempos no amor, então:
1º tempo: o mundo se abre em perspectivas.
2º tempo: o mundo se fecha para não se correr riscos de perdê-lo.
Aquilo que era tido como bonito no começo – “Você é tão anticonvencional” – depois é visto como errado – “Você não pode agir assim, fazer aquilo” – e etc, etc… Tudo por medo de perder, medo conservador.
Falar constitui o que de humano há em nós quando nascemos. Continuar falando vai nos constituindo e nos transformando ao longo de toda a vida. Porque, quando falamos (se o outro deixar), vamos nos escutando, tendo o tempo para nos percebermos e conseguirmos nos deslocar, aprender e melhorar. Se isso não ocorre, estagnamos, não crescemos e começamos a descida rumo ao empobrecimento.
E paradoxalmente, é justamente quando a relação vai se prolongando que passa a não haver mais espaço para sabermos quem está do nosso lado. Há os que não falam mais de si e os que, como uma criança que acha que é dona do outro, pensam que o parceiro não só “tem que” ouvir como também aguentar tudo dela.
Ficamos tão previsíveis porque a única coisa que objetivamos – por baixo de tudo o que fazemos – é limitar e controlar o outro para que não corramos o risco de perdermos. Ou também para impedir que o outro faça o que eu não gosto, impedir que seja do seu jeito. O outro tem que existir para mim e do jeito que me agrada sempre.
Quando não estamos satisfeitos com o que somos queremos obter do outro. Não temos para dar. Além do mais, existem os que dão sem ter ou sem querer para manter o outro perto de si e de novo: para se sentir vazio e querer se completar com o outro.
Os seres amorosos estão condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando, procurando as chaves, sempre passíveis de serem revogadas. O amor é um labirinto de mal-entendidos cuja saída não existe.
Não há garantias, não se pode aprisionar o outro dentro dos nossos braços – por amorosos que sejam.
Viver é perigoso. Ter é perigoso. Saber ter é poder saber-se o tempo todo no risco de perder, como acontece com a nossa vida e o amor da nossa vida.
O amor azeda quando passamos a ser dominados pela necessidade de garantir que ele não acabe e o transformamos em uma prisão. Se alguma garantia há é quando, nas palavras da neurocientista Suzana Herculano-Houzel, “paixão dura enquanto estivermos associando prazeres incríveis àquela pessoa”.
Amor encarcerado é amor azedo.
Luciene que impactante este artigo. Adoreiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Eu acredito que com o tempo, Luciene, não só o amor, mas tudo vai mudando. As pessoas mudam, como disse Guimarães Rosa, pois não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – vão sempre mudando, afinam ou desafinam. Então, não se pode prever o que está por vir, principalmente no amor. A saída está em aceitar que se eu mudo, o outro também irá mudar. E reconhecermos que o amor e tudo na vida têm suas fases, assim como a lua : cheia – crescente – minguante e nova. Assim é a vida. Causa estranheza, sim, mas é preciso aprender a suportar/aceitar.
No início, há, sempre, uma relação de respeito entre os dois, de limites, de educação – cada um sabendo lidar com o outro, respeitando e aceitando as diferenças e características de cada um. Tudo no começo é novidade, em qualquer tipo de relação. É o momento de se conhecer, e, nem sempre, nesse período, as pessoas se mostram, completamente, como são; como você disse, segundo Lacan, é a fase do imaginário. Quando se casam ou mesmo em outras relações entre as pessoas – de negócios (sociedade), de trabalho, entre amigos e até entre parentes, quando moram juntos; no começo, agem de uma forma, depois começam a se mostrar, exigir, expor, questionar, não aceitar o que foi combinado e perceber que a outra pessoa não é bem, como imaginou. É natural. E se é natural é normal? Estão vivendo, agora, o real/ a prática. E, na prática, nem tudo que foi planejado, projetado vai proceder do mesmo jeito por muito tempo, ter a mesma perfeição. Uns podem até melhorar, outros podem piorar. Assim, em todas as relações. Assim é a vida como disse o mesmo escritor “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria,aperta e daí afrouxa,sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
Coragem, sabedoria, inteligência, capacidade de se manter calmo/calma para sobreviver no meio da travessia, momento que o real se dispõe, como diz o mesmo escritor “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”, se um não sabe mais lidar com o outro, surge a indiferença. E aí, se não há alguém que ajude ou que sabe ceder, controlar a situação, manter a calma, que não é fácil; pode tornar essa relação “sem graça”. Perde a graça. Porque não há mais o perdão. Vai perdendo o atrativo, a paciência, a conveniência, o pacto que fizeram juntos. E quando se trata de um casal, que moram juntos, torna mesmo difícil, azeda mesmo. Contudo, quando o casal/amigo/colega de trabalho ou até irmãos se respeitam, são educados, e conseguem manter essa relação com certa elegância, delicadeza, podem se converter e tornar bons amantes/amigos, parentes/sócios/boas relações entre empregados por mais/muito tempo. Assim, eu penso.
De fato, Nilva, as coisas se passam como você fala. Eu, no entanto, acredito que dá para não ficar só nesse movimento, mas também poder viver o namoro, o respeito, a delicadeza ao longo do tempo. Não só acredito como vivo e desejo multiplicar isso com quem me lê. Vamos abrindo caminho que as coisas mudam e acontecem…