Nas famílias não se fala do que verdadeiramente importa.
É um cotidiano pleno de irritação e cobranças surdas, como se responsabilizássemos o outro pelo nosso momento de infelicidade.
Olhos crispados culpando o outro num silêncio acusativo.
Existe uma covardia no silêncio. Não falamos para não sermos pegos em nossas palavras, mas acusamos e vomitamos silenciosamente o nosso mau humor e a nossaraiva através da nossa cara e do nosso corpo.
O mundo padronizado da era moderna (século 20) produziu pessoas em formas, como em uma fábrica. Como consequência, o ser humano, que é diferença pura, acabou adulterado e aprisionado em padrões e conduzido a uma vida infeliz.
Dizer o que se pensava – mesmo quando se chegava a dar conta de pensar fora do padrão – e falar o que se sentia meeesmo não geravam aceitação imediata.
Consequentemente, para não perdermos nosso lugar na vida do grupo, recalcávamos, engolíamos, pensamentos e sentimentos.
O que engolíamos ia estragando nossa vida interna, dando enjoo de estômago até que, para nos aliviar, vomitávamos a nossa frustração e sofrimento nos mais próximos.
Tomando o título do livro de José Ângelo Gaiarça A família de que se fala e a família de que se sofre, podemos dizer então que a família é um mal em nossas vidas?
Longe disso. Família é o lugar por excelência onde despejamos nosso mal estar. Em seguida vem o cônjuge, depois os amigos e colegas até chegar ao mundo inteiro recebendo o nosso ódio por estarmos infelizes.
Já viu aquelas pessoas que assistem à televisão xingando o que aparece na telinha? Deve ser um bom exercício para desopilar o fígado cheio de raiva de tudo. Afinal, alguém tem que ser o culpado do estômago dando voltas e tentando digerir a comida ruim que foi deglutida pela escolha do comensal. Ele pensa, porém, que a comida lhe foi enfiada goela abaixo. Que os outros aguentem o vômito então.
O que tento dizer “over and over again” nesta coluna é que estamos numa nova formatação social em que não há mais as certezas do caminho certo, do bem e do mal, mas a escolha contextualizada diante de cada situação.
E nesta nova maneira de vivermos juntos, o tema “felicidade” tem um lugar central.
Por que será?
É porque viver sem se mutilar para pertencer já é possível. Antes, fazer diferente era tão altamente punido que não valia o custo-benefício. Uma mulher desquitada até a década de 70 que o diga. Era pedrada de todo lado!
Largar uma profissão promissora para fazer algo do próprio prazer era garantia de fracasso certo.
Hoje alguém inventa um modo de se sustentar com prazer e consegue colocá-lo no mundo com chance de dar certo. Como uma amiga que inventou um site de vender enfeites da vovó e está bamburrando.
O mundo padronizado fazia o ser humano infeliz e ao mesmo tempo impossibilitado de falar dessa infelicidade.
Era um mundo injusto no sentido de impor ao ser humano uma igualdade mutiladora e roubadora de prazer.
Hoje o desafio é achar o rumo do que queremos. É inventar um modo de viver que não nos deixe “os errados”, nem vítimas, nem acomodados.
Lugar para pôr no mundo já tem. Meio caminho andado, portanto.
Do que não se fala em família então?
Não há como falar do que não se assume com responsabilidade. Quando pensamos que o mal estar vem de fora, vem do outro e não de nossas próprias atitudes, reclamamos impotentes de tudo, mas não conseguimos falar do que de fato incomoda.
Para bem dizer o que está doendo ou o quanto se está infeliz, por exemplo, é preciso não ocupar o lugar da vítima e não tentar cobrar por telepatia. Não adianta esperar que minha cara azeda faça as pessoas ao meu redor acordar e ver que elas precisam fazer algo que mude o meu estado de espírito.
Tem alguém para cuidar de você melhor do que você mesmo? Se tiver, terceirize e pague o preço exigido.