Lacan dizia que amar é querer fazer “Um”, tentar a partir de dois fazer um. Quanto a isso, ele não deixa a menor dúvida no seu Seminário 20, em que afirma: “Nós dois somos um só. Todo mundo sabe, com certeza, que jamais aconteceu, entre dois, que eles sejam só um, mas, enfim, nós dois somos um só. É daí que parte a ideia do amor”.
Será que tentamos nos ligar a um outro querendo fazer “Um” porque somos só a metade?
É sim. Por estrutura, somos seres incompletos.
E o que podemos fazer com seres incompletos?
Tentar completá-los, ora bolas! Tentar encher o buraco com um outro ser humano.
Ah, mas… E se o outro ser humano não couber dentro do tamanho do seu buraco? E se o seu “tapa-buraco” não se adaptar a suas necessidades, como fazer?
Dá-se sempre um jeito: corta daqui, preenche com uma fantasia aqui, uma ilusãozinha de lá, e a coisa se completa de novo. E não nos esqueçamos: buraco cheio, vida boa. Buraco cheio, a solidão caça rumo. Buraco cheio, a felicidade voltou para casa.
Mesmo? Até quando? A cola Tenaz que colou meu mal-estar, o elixir que encheu o meu pote, tem pernas, vontade própria e pode – horror dos horrores – me deixar.
Mas temos outras coisas no que pensar. A busca de tapar o vazio é a “solução” encontrada. A grande questão é de que se trata esse tipo de sofrimento. Na verdade, tudo começa porque existe o buraco, a falta, a incompletude.
Sim, é verdade, mas isso pode ser uma riqueza. Seres incompletos são aqueles que se fabricarão para sempre.
O ser que é incompleto não precisa pedir para que fechem o buraco. É para ter prazer com ele: decorando-o com múltiplas peças, surfando, deslizando, entrando e saindo, curtindo os momentos. É estar mais cheio às vezes e mais vazio em outras ocasiões. É ter chuva, depois sol, é estar frio e calor. É o ir acontecendo do fluxo da vida bem vivida.
Não se completa a incompletude. Ela é como o joguinho de “falta um”, aquele que tem uma peça faltando para você se divertir mudando as outras peças, tendo o prazer de inventar a partir de um buraco.
Porque existe o incompleto é que podemos dar novas respostas, inventar – palavra sinônima de criar – incessantemente uma vida nova. Ser incompleto pode ser fantástico se você tomar por esse viés: o do renascimento e aprendizado eternos.
Ser incompleto é poder ir tendo vida nova, gostosa de ser vivida. Vida que é significativa e intensa, mas também com a serenidade de quem usufrui dos momentos e está bem nutrido dela – a vida gostosa.
Amor “tapa-buraco” não foi feito para esta vida incompleta, que é muito boa para se criar viveres únicos – nós já vimos. Não é para completar, é para ir trocando de móveis, de pensamentos, de certezas e de escolhas.
Tem, é claro, partes fixas, mas o pedacinho incompleto onde a construção continua, onde o novo é gerado, fica lá, no seu cantinho necessário e importante. A ilusão da completude é a trava que faz a máquina parar. A vida parar.
Nosso amor pode ser o azeite para a máquina funcionar macia e deliciosamente. Pode ser o companheiro de desafios, conquistas e folguedos.
Nosso amor pode ser uma presença que não preenche tudo, que não dá todas as respostas, que não cuida de nós como se fosse uma mãe, mas é um adorno para a vida incompleta e boa para ser preenchida sim, mas obstruída não.
O amor-sofrimento é que mata o encontro no amalgamento do medo de perder, tentando possuir e garantir. O amor é o coroamento da vida e não a morte do encontro de dois.
Amor-tapa-buraco, amor-sofrimento, amor-usufruto, amor-gostoso, amor-visita-nova-em-casa, amor-alegria, amor-prazer… Tantos amores possíveis…
—
Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 25 de fevereiro de 2016.