Mundo fixo e mundo fluxo

Claude Monet (Bridge over a Pond of Water Lilies, 1899) - www.metmuseum.org
Claude Monet (Bridge over a Pond of Water Lilies, 1899) – www.metmuseum.org

Luciene Godoy //

Eu sou burro. Eu sou organizado. Eu sou medroso. Eu sou esquecido. Eu sou guloso. Eu sou inseguro. Todos têm suas definições de si mesmos.

Haverá um tempo no futuro em que os seres humanos ficarão estupefatos, ao serem informados nas aulas de história que as pessoas no começo do século 21 acreditavam que eram definíveis de uma vez para sempre. Que elas acreditavam piamente terem identidades fixas e que assim era o ser humano: aprendeu, ficou fixado e imutável.

Terão pena de imaginar o sofrimento que era pensar em si mesmo – e o pior – sentir-se, perceber a si mesmo, como um modelo, um modo de ser que se repetia, que se sucedia o mesmo ao longo do dia, ao longo de uma vida inteira, sem grandes modificações, sem grandes surpresas.

É que, no futuro, já será de domínio público o conhecimento de que o ser humano é um fluxo ininterrupto de “ser-o-que-se-é” a cada momento. Sempre se encontrando com um mundo que já não é mais o mesmo porque não fica parado nunca.

Tudo vai acontecendo à medida que o planeta faz seu movimento orbital. Dias, horas, minutos e segundos se escorrem e a água do rio que passa diante de nós não é mais a mesma. Tampouco são os mesmos os olhos que olham a água, ou a nuvem, ou o trem ou o olhar da pessoa amada naquele momento.

Terão muita pena do nosso sofrimento inútil. Dores de seres perdidos de si mesmos, com autodefinições lá do passado que já não definem mais nada do que é o presente e do que se é no presente.

Pessoas cortando diariamente suas pernas para caberem na cama pequena que já não lhes cabe mais. Apequenando-se para caber nos conceitos antigos, caber em um mundo que também pensam ser fixo e que, no entanto, também é fluxo.

No futuro, os seres humanos terão descoberto que nós voamos. Que a vida é sempre um vento soprando e nos levando, às vezes, para onde queremos ir, às vezes não, mas que o comando de nossas asas podem usar bem as correntes de ar, fazendo-as se tornarem favoráveis às nossas escolhas, ao caminho que vamos traçando… no ar.

E, sabemos, “tudo que é sólido desmancha no ar”, vivemos numa “sociedade líquida”, e mais, vivemos no mundo de ar, de movimento, de tudo e de nada.

No futuro a expressão “eu sou” vai ser substituída por “estou”. Então nos referiremos a nossa pessoa com expressões do tipo: “Estou quer ler agora”, “Estou está com muita energia para fazer a viagem”, “Estou quer andar de bicicleta”.

Daí, ao invés de “como vai você?”, vai caber o cumprimento: “Como vai o ‘estou’?” ou “Como o ‘estou’ está?” E a resposta pode ser: “Estou vai bem hoje”.

Na evolução da humanidade, pela percepção de que somos mutantes e pulsantes, bem como é o mundo, o “eu sou” evoluirá para “estou” para melhor definir, ou seja, dar uma definição mais justa do que é o ser humano: um ser do e no movimento.

Será comum dizermos: “Normalmente gosto de maçã, mas estou não está a fim agora. Estou está doido por uma banana e nem sei por quê”. Viver assim será tão mais respeitoso da nossa condição humana que é a de “ir-sendo”.

Mesmo no mundo de hoje, embora já legitimando o movimento incessante, mas ainda pensado por muitos de maneira fixa, são as pessoas que já moram no mundo fluxo que vivem bem. Repare ao seu redor que você verá diversos exemplos.

Hoje a característica mais valorizada na carreira de alguém não é a obediência, mas a criatividade, a invenção, a ousadia de propor o desconhecido e novo.

A tradição, o costume do que aprendemos no passado permanece, sem dúvida, dentro de nós, lastreando o que fazemos, nos dando base para os saltos. Mas a coragem do caminhar resoluto, da aposta na invenção, está na escolha pelo risco – que traz a surpresa da pulsação de se sentir vivo e se mexendo.


Artigo originalmente publicado no jornal O POPULAR em 10 de março de 2016.

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