Luciene Godoy //
“Fulano fala difícil”, quantas vezes já ouvi essa frase…
Ao repeti-la neste momento, nem me passa pela cabeça assumir a posição de franco-atiradora, lançando um julgamento negativo, sem substância e repetido.
Ao contrário, proponho a pergunta: para que serve o falar difícil? Porque serventia ele com certeza tem: escancarada ou velada, sabida ou escondida do próprio falador.
Bem, falar difícil serve para provar a inteligência ou conhecimento vasto de quem fala (difícil). Falar de forma complicada, cheia de palavras estranhas (e, é claro, desconhecidas pelo humilhado interlocutor, senão o efeito não é atingido), é a própria definição da expressão “falar difícil”.
O “fala-difícil” intimida, humilha e exclui o outro para se exaltar – relação em espelho onde coloca o outro como oposto para ser alguma coisa – e com isso inviabiliza construções possíveis. Destrói relações que poderiam nutrir de potência os lados envolvidos e não somente a alma parasita e faminta que se alimenta do que retira do outro.
Falar difícil serve para impossibilitar o acesso de muitos ao lugar de privilegiado saber que se ocupa. Se muitos têm, o valor baixa.
Será? Olha que o mundo está mudando e você ainda não notou.
Os intelectuais mais ouvidos, seguidos e amados no momento são pessoas que compartilham de forma simples e atraente seu saber – obtido a duras penas… ainda – com todos a que se dirigem, de alunos a plateias de diversos seguimentos. Não falam difícil para provar o quanto conhecem.
Nas próprias palavras do historiador Leandro Karnal, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dirigindo-se a seus alunos a respeito de trabalhos acadêmicos (repito e não se assuste: escritos “acadêmicos”), os convida a escreverem “de forma precisa, mas sem a feiura da linguagem acadêmica”.
Karnal afirma que esse tipo de escrita não tem beleza, não tem paixão, não tem entusiasmo e que sua única utilidade seria servir para a banca examinadora. O lúdico, diz ele, fica fora de tudo isso.
A proposta “karnaliana” (a meu ver, ele já merece virar adjetivo) revira essa relação de poder – sabemos o quanto há poder no saber – tanto mais quando ele diz: “Eu não quero mais ter discípulos. Eu quero ter amigos. Amigos me completam e eu os completo. Discípulos sugam e são inconvenientes”.
Quem nos suga, no final das contas, nos debilita porque não há troca. Há babação e busca de identidade no líder, no guru, no intelectual admirado que se torna o corpo do admirador covarde e submisso, mas também cobrador implacável do seu quinhão: a pele do outro, para nela se abrigar contra as intempéries das escolhas às quais a liberdade nos vota.
Nós, intelectuais que não queremos falar difícil, que não queremos manter para nós o privilégio do saber, cada vez mais recebemos a adesão e o alimento para a alma, que colocamos na capanga (sacola, gente!) para nos alimentar pelos caminhos de nossas escolhas perigosas, há que se dizer.
Há pouco mais de um mês lancei meu livro A Felicidade Bate à sua Pele – uma Teoria do Apaixonamento, e tenho tido manifestações emocionantes tanto do leitor leigo como de profissionais sobre a sua leveza e profundidade, e o quanto ensina de teoria sendo de uma leitura agradável e fluida – como se fosse literatura e não teoria.
Depois disso, sigo com o espírito mais leve. Afinal, é exatamente o que busco: falar de psicanálise para que todo e qualquer interessado possa usufruir… sem falar difícil para provar o quanto sei. E só sei tanto pelo fato de ter feito uma escolha que me deixou tão especializada, mas que os outros não necessariamente fizeram.
Os especializados que podemos ser todos nós é em trocar. Trocar nossas riquezas e nos potencializarmos mutuamente.
Usufruir uns dos outros sem a necessidade de destruir, numa prazerosa festa da “vida que se vive junto”!
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Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 31 de março de 2016.
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