A primeira palavra que me vem ao pensar em sem-pele é uma outra bem parecida e que ressoa em minha mente: sem-teto.
Só parecida não, sinônima.
Os sem-pele são pessoas que não habitam seu próprio corpo, são os sem-teto de si mesmos.
Eles são despossuídos de um lugar subjetivo que seja seu e vivem olhando ao redor e se apossando da vida de quem está por perto. Geralmente as pessoas mais chegadas são as vítimas preferenciais.
Os sem-teto precisam de uma casa para morar. Necessitam de abrigo como todo ser humano. Querem um lugar para chamar de seu. Mas o lugar que percebem como seu está lá no outro.
Estranho falar dessa forma, mas repare os atos das pessoas ao seu redor que você confirmará a esquisitice operando em seu dia a dia.
Vou tentar dar uma imagem dos sem-pele.
São pessoas que, por exemplo, quando você está dirigindo o carro vão falando tudo o que você deve fazer. Dar uma ou outra sugestão, ou chamar a atenção para um perigo que você não está vendo é bem vindo. Ninguém dá conta de tudo mesmo. É bom contar com a ajuda amiga e respeitosa dos que lhe rodeiam. Mas aquela história de ter um robozinho tipo GPS humano lhe guiando sem colocar as mãos no volante é outra coisa.
As mãos são as suas, mas quem está dirigindo é o sem-pele do lado, que está usando o seu corpo para a execução da tarefa em curso.
Você vai fazer ou está fazendo algo e lá vem um sem-pele desavisado dizer como você deve fazer ou não.
Você pode se perguntar em desespero por que será que o outro não vai fazer o que lhe compete. Porque não tem corpo, ora. Está usando o seu para realizar, para fazer, para existir.
O nosso corpo próprio é meio apagado mesmo para todos nós. Isso é resultado da forma em que nos unificamos em nossa cultura. A “unificação” é um termo da psicanálise lacaniana que quer dizer que nos vemos como um todo, um corpo completo.
O verbo ver é bem escolhido porque é por meio da visão prioritariamente que nos reconhecemos como um corpo. Quando no sétimo mês de vida o bebê consegue focar bem as imagens, ele vai se dando conta de que é um ser humano e pertence à categoria da mãe, que é aquela presença constante.
Percebemo-nos como um corpo primeiramente no espelho que é o corpo do outro.
Não é mesmo verdade que só nos vemos no espelho? Precisamos de uma superfície refletora de nossa própria imagem para nos enxergarmos.
Normal. É assim mesmo.
Mas por que estar “grudado” em tudo que o outro faz? Por que esse sentimento de que tudo que o outro é tem a ver com a gente. Por que o que o outro faz nos afeta tanto?
Porque não temos corpo separado. Sentimos o corpo do outro como se fosse o nosso pela nossa formação na imagem.
Somos sem-teto, sem moradia subjetiva, ou seja, sem-pele porque temos dificuldade de entrar em nossa própria casa. É mais fácil cuidar do que está lá fora. Do que eu vejo e não do que não vejo.
O que fazer para ter pele?
Entrar. Entrar dentro da própria vida. Estar separado e só com suas escolhas, seu modo de ser. Entrar na própria pele, viver a própria vida junto com outras vidas e não dentro dos outros corpos. Buscar sentir o que quer, perguntar a si mesmo e não ao outro. Não é o outro que sabe de você.
É, mas isso dá solidão… Solidão ou autonomia?
Autonomia é uma bela palavra e uma maravilhosa experiência. É só com ela – que é a sua pele emocional – que podemos viver juntos, porque já estamos separados.
Se temos pele, temos corpo. E só assim podemos prescindir de tentar entrar no corpo do outro para viver a “nossa” vida.
Imagina entrar no corpo do outro para viver a nossa vida! Muito estranho!
Ser sem-teto é muito ruim. Ser um sem-pele é pior ainda.
Luciene, isso é desgrudar.