Luciene Godoy
Impressão que muitas vezes temos e com um suspiro de desespero pronunciamos a dita frase que muito bem espelha a nossa incompreensão do mundo.
Porém esse fato é tido como normalíssimo e parte de todos nós por Jacques Lacan, o grande psicanalista francês, tendo sido comprovado pela sua teoria do espelho. O eu é paranóico por estrutura. Há uma mistura entre dentro/fora, eu/outro, o mesmo e seu oposto. Desse jeito o mundo só pode estar “de cabeça para baixo ” porque funcionamos com a lógica da câmara fotográfica. Os nossos olhos captam as imagens de cabeça para baixo.
Muito engraçado isso, se não gerasse tanta confusão em nossas vidas.
Desde o advento da bipedia (o homem parou de andar de quatro), o faro – instintual – cede lugar ao olhar – relacional – como principal meio de contato com o mundo e estão aí as conseqüências.
Confundimos coisas do tipo: não é o outro que não me dá. Sou eu que não consigo pegar.
Não é que algo não exista, eu é que não consigo vê-lo – passa diante dos meus olhos , mas o que não é esperado não é visto. Temos um olhar seletivo. Só vejo o que já esperava ver. Quando você se “surpreende” vendo algo novo, procure direito e vai ver que a expectativa já criara forma dentro de você que, depois, foi capaz de identificar de fora.
No mundo tem de tudo, infinitas coisas. Nós é que só vemos o que selecionamos.
Por exemplo: entre dois tipos de acontecimentos, um bom outro ruim, tem quem só se liga ao ruim a cada vez que ele aparece, aí toda a sua vida vai mesmo ficando povoada de coisas ruins, selecionadas por ela mesma.
Não é que tudo só aconteça da mesma forma. Eu é que tenho a tendência de fazer e perceber tudo do mesmo jeito. O circuito pulsional é um percurso na relação com o mundo que se repete sempre da mesma forma: se sou vítima, vou, a cada situação, me significando como tal até ser mesmo. Tornando-me prisioneiro de uma mesma maneira de me ver. Se acho que sou infalível e não vejo jamais os meus erros, apesar de cometê-los aos montes, continuarei para sempre com a certeza da infalibilidade, enquanto todos ao meu redor permanecem gritando a evidência. O mundo me mostra diferentes coisas, eu é que só vejo o que já estou viciado a ver.
Tendo aprendido mais esse detalhe sobre o funcionamento do ser humano, quem sabe possamos nos ocupar em tentar ver mais “variado”, em vários ângulos, de várias posições. Sair do nosso modo viciado de ver a vida e a nós mesmos.
Talvez assim as relações não sejam tão impossíveis.
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Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 14 de abril de 2011.