O Inferno é o outro?

Luciene Godoy

Tendemos a pensar que todo o nosso sofrimento está, de uma forma ou de outra, relacionada ao outro. A frase “O inferno é o outro” atribuída ao filósofo francês Sartre parece, quase sempre, tão verdadeira! Temos a certeza de que se o outro não tivesse nos tratado de tal ou tal forma, feito isso ou aquilo, se o mundo não fosse tão… ou tão… aí, sim, a minha vida seria um paraíso! Parece nos que sempre que o outro está envolvido tudo se torna tão mais difícil. Será que ele quer assim ou vai reclamar? Será que vai concordar ou dificultar?etc…etc…

Por outro lado podemos atribuir o nosso sofrimento ao fato de não ter alguém. Não daria para ser feliz sem alguém, mas não qualquer um. Alguém para nos fazer feliz teria que perfazer certas exigências e se acaso não o fizer, é por isso que sofremos. Ficamos, assim, no impasse, se temos sofremos, se não temos sofremos também. Porém, vale lembrar, o sofrimento nos parece sempre vir de fora, esse é o engodo.

Por isso, não dá para falar em relações humanas pelo externo, mas pelo que chamamos de relações intrapsíquicas. Com quem, afinal, nos relacionamos internamente? Com que personagens convivemos dentro de nosso teatro pessoal?

A sensação de sermos vários dentro de nós, esse diálogo interno que temos com nós mesmos são a prova de todo um universo interno. É a nossa história de vida, o que foi e o que vai sendo: interpretações, valores, ódios e amores, sentimentos que somente a gente mesmo pode viver. A esse mundo, o outro não tem acesso, e é nesse mundo, como muito comumente falamos, que habitam nossos demônios.

Portanto, é de arrepiar, mas parece que podemos dizer que o inferno não é o outro, que o inferno somos nós mesmos. Nossas grandes mazelas estão muito mais na maneira de ver, no olhar que temos para cada coisa. É por isso que afirmamos serem as relações pessoais distorcidas pelas intrapsíquicas.

Esse fenômeno, essa projeção do mundo interno sobre o externo está acontecendo o tempo todo. Vejamos o exemplo de uma jovem bonita e interessante que aos trinta anos afirmava insistentemente que queria muito se casar, mas que era “azarada”, que somente homens comprometidos se interessavam por ela. Num processo de análise ela vem a descobrir que era ela mesma que, sem se dar conta, selecionava homens com os quais não pudesse vir a se casar, porque havia conseguido se lembrar que, quando pré-adolescente, ouvia a mãe a repetir “casamento é um sofrimento, casamento é algo horrível”. Ela, de fato, queria se casar, mas, por influência de uma fala do mundo intrapsíquico, ela fugia do casamento, pois fazia-o dentro de uma lógica de fugir do sofrimento.

Cito um outro exemplo, o de uma jovem casada com um marido reconhecidamente mulherengo, com uma sucessão de casos e traições, pouco companheiro, mal pai, mal amante. A esposa em questão era bonita, malhada e bem cuidada, profissional bem remunerada, mãe dedicada e admirada pelas amigas. Amigas que não conseguiam entender porque alguém tão especial se mantinha numa relação tão desigual e insatisfatória. É que as amigas não podiam aquilatar o papel que o pai da jovem em questão tinha nessa história. Explicando: ela teve um pai extremamente presente, bom pai, companheiro e amante de sua mãe. Assim, a imagem do pai se sobrepunha à do marido. Ela não conseguia abandonar a fantasia de que o marido, apesar de tudo, era como o pai. A realidade não estava sendo levada em conta e não era com o marido, mas com uma fantasia que ela continuava a viver.

Esses são exemplos ilustram o fato de que vemos o mundo projetando o que nos estruturou o psiquismo na infância. É isso que torna tão difícil o estar junto humano, porque simplesmente não vemos nada como é, nada nos é objetivo. O que é próprio do ser humano é modificar a realidade pela leitura que seu olhar lhe permite ter dela. A verdade é que não convivemos com o outro, mas com o que somos capazes de ver nele! É o que me faz lembrar a história dos dez cegos que tentavam, pelo tato, “enxergar” um elefante. Cada um de seus respectivos pontos dizia: “O elefante é como uma cobra”, o outro “parece com uma coluna” e outro ainda “que nada, parece uma cortina de couro”. Cada um falava do que conseguia abarcar. Cada um, a seu modo, estava “ certo”, tinha motivos para ver com aquela diferença.

Somos todos da mesma forma limitados dentro de nossa experiência a ver apenas alguns aspectos da imensa complexidade humana. Se pelo menos levarmos isso em conta, conseguirmos nos perguntar qual é a tonalidade dos óculos com que colorimos o mundo antes de vê-lo, sabermos que projetamos no mundo nosso mundo interno, já serão possíveis relações melhores, uma vez que não pautadas na crença de que o “meu lado é que é o certo”.


Artigo originalmente publicado no jornal O Popular em 8 de novembro de 2008.

Este post tem um comentário

  1. Combinou bem com a aula. Esse artigo é  dos melhores! Bjs.

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