O Popular – 75 anos
Um divã para os leitores
O POPULAR estreia amanhã sua mais nova coluna, coordenada pela psicanalista Luciene Godoy, que vai tratar de nossos desejos, angústias e emoções sob a ótica da psicanálise
Rodrigo Alves 21 de fevereiro de 2013 (quinta-feira)
No século 21, época da superinformação, já vivemos na era do tudo pode. Mas ainda não sabemos lidar com a liberdade que temos em mãos e fazer nossas escolhas tem nos custado cada vez mais novas angústias. A avaliação é da psicanalista Luciene Godoy, coordenadora da nova coluna que O POPULAR estreia amanhã, Divã do Popular, que será publicada todas as sextas-feiras, no caderno Magazine.
A coluna é mais um serviço que O POPULAR oferece aos leitores, dentro das comemorações de 75 anos do jornal e dos 80 anos de Goiânia.
Goiana nascida em Caldas Novas, que adotou a capital goiana para viver há mais de 30 anos, Luciene, 54 anos, é graduada em pedagogia pela PUC-GO e pós-graduada em psicanálise pela PUC-SP. Há anos, ela se dedica ao estudo dos novos caminhos da teoria freudiana.
Luciene faz parte de um grupo de pesquisadores que atualiza e aprofunda as pesquisas iniciadas pelo pai da psicanálise, com contribuições da sociologia, da história e da filosofia, a fim de encarar a nova era social que a sociedade ocidental experimenta. Também ligada ao Instituto da Psicanálise Lacaniana (Ipla), de São Paulo, Luciene no momento estuda ainda a prática da clínica da psicanálise para o século 21, com o psicanalista Jorge Forbes.
Assuntos cotidianos
Segundo Luciene, a coluna Divã do Popular terá como objetivo abordar os mais diversos assuntos cotidianos sob a ótica da psicanálise. Além da colunista, uma equipe de outros profissionais também assinará textos no espaço coordenado por ela. O leitor será convidado a participar e provocar discussões entre a equipe, que tem a missão de apresentar suas ideias em linguagem acessível aos não iniciados (confira mais na entrevista com Luciene nesta página).
Entrevista Luciene Godoy
“As pessoas estão confusas”
21 de fevereiro de 2013 (quinta-feira)
Diomicio Gomes
Na entrevista a seguir, a psicanalista Luciene Godoy antecipa alguns dos primeiros assuntos da coluna Divã do Popular – que, a partir de amanhã, será publicada todas as sextas-feira no caderno Magazine do POPULAR –, explica sua dinâmica e ainda traça um panorama de questões que pautarão seu trabalho.
Precisamos de um divã agora mais do que nunca?
Precisamos de um novo divã, advindo do divã freudiano, por estarmos no século 21, passando por grandes transformações. Costumo dizer que as abelhas, a cada geração, fazem a mesma coisa. O ser humano não. Ele muda a cada geração. Mas não é só uma mudança de gerações. É uma mudança de parâmetros, de laços sociais. Vamos compartilhar informações sobre isso nesta nova coluna. As pessoas estão confusas: são muitos tipos de casamento, quase ninguém entra mais em um trabalho para ficar a vida toda. E vamos instaurar esse divã no POPULAR para que possamos falar de tudo isso, com o viés da subjetividade.
Como esses assuntos serão trazidos para a coluna semanalmente?
A ideia é trazer informações relevantes para a compreensão do que está acontecendo, de forma simples, acessível, direta e útil. Em princípio serão textos meus. Em seguida vamos trabalhar com textos de outros profissionais da área “psi”, coordenados por mim, sempre falando de eventos que tocam as pessoas, algo que tenha acontecido, como uma catástrofe ou alguma coisa boa, um filme comovente. Posteriormente, pretendemos também fazer convites para outros profissionais, como artistas, médicos, para que possam falar de suas vivências. Vai ser um verdadeiro fórum. E as pessoas estão convidadas desde já a comentar, discutir, concordar, discordar, para que essa equipe possa também se posicionar sobre os assuntos.
A senhora diz que as relações de poder verticais vão perdendo espaço para um tipo de relação em rede, horizontal. Leremos sobre isso?
Esse é um ponto nodal. Neste momento, estamos colhendo os frutos do que pensadores do Iluminismo, ainda no século 18, sonharam para a humanidade. Estamos começando a usufruir uma liberdade de pensamento. O que nós chamamos de “mundo edípico freudiano” era algo organizado com base na liderança de um comandante que pensava e a quem os outros obedeciam. Aí veio a queda dos ideais. As pessoas começaram a ver que esses líderes falhavam e que as instituições não eram donas da verdade. E o que aconteceu? O ser humano foi se individualizando. Mas não é individualismo no sentido egoístico. É que estamos cada vez mais responsáveis por nossas vidas. Mas isso aumenta a angústia.
Quer dizer que se tem mais conhecimento e que não há mais como responsabilizar o outro?
Sim. E você tem não só meios de adquirir uma informação, como meios de criar sua informação. Você coloca uma foto na internet e em minutos ela pode estar circulando pelo mundo inteiro. Antes, se você presenciasse alguma atrocidade, onde iria para propagar isso? Ao jornal, à televisão. Agora é você quem coloca no celular. É nesse mundo que a gente vive, de surpresas, no qual não se sabe o que vai acontecer no próximo passo.
O que a senhora está mencionando refere-se ao que se chama na filosofia de hipermodernidade?
Absolutamente sim. A hipermodernidade, inclusive, é um conceito que a gente estuda como analista. Gilles Lipovetsky, filósofo e sociólogo que escreve sobre as transformações da sociedade contemporânea, fala que não estamos mais na pós-modernidade, mas na hipermodernidade. E este é um assunto sobre o qual discutiremos muito na coluna. É um acirramento da pós-modernidade, algo mais violento ainda, marcado pela troca de informações em uma velocidade imensa. Na psicanálise, por conta da hipermodernidade, temos o desafio em pensar diferente do que era no mundo edípico, anterior ao nosso, em que o sofrimento era motivado pela proibição de fazermos o que queríamos. Hoje você pode tudo. A grande angústia da hipermodernidade é a escolha.
Estamos falando de liberdade, mas ainda há, obviamente, condições que bloqueiam e censuram nossos atos. O que, sob a ótica da psicanálise, nos bloqueia nesta sociedade hiperinformada?
Um dos itens que comandam a hipermodernidade é o imperativo “goza”. Antes tínhamos o imperativo “não pode, é proibido”. Agora é “goza”. É um imperativo de fazer tudo. Assistindo à cobertura do carnaval na TV, percebi que é comum ver que, quando colocavam o microfone na frente da pessoa perguntando sobre a festa, ela responder gritando: “está demais!”. Mas você via no olhar dela que estava triste. Mas ela precisa estar gozando. É impelida a ter prazer. É ótimo ter prazer, mas, se você é comandado, isso não lhe deixa ser o que quer ser. O que a análise pretende é trazer à vida o sujeito, valorizando sua singularidade. A imposição é um desrespeito à singularidade.
Sexualmente falando, já saímos do que se denomina de mundo edípico?
Antes havia padrões rígidos: coitada da mulher que quisesse se divorciar há um século. Os padrões sexuais também eram assim. Quem vivesse fora deles tinha uma fonte de sofrimento. Hoje quem vive fora deles muitas vezes até recebe apoio de amigos, da família, e por isso afirmo que a situação andou um pouco mais para o respeito à singularidade. Ainda bem, porque não somos bichos. Não agimos por instintos, mas pela pulsão. A pulsão é algo que se parece com o instinto, mas não é a mesma coisa. É algo apreendido na infância e nas relações que temos. Quando se fala de masoquismo, por exemplo: uma criança que apanha, devido a determinados circunstância e momento, pode, em tese, significar aquilo com amor e tesão. E vai incutir esse significado nas relações futuras. Isso entra para a singularidade dela. Entre vacas, que têm instinto, não há distinção e variante. Todas têm a mesma sexualidade. Se a fêmea está pronta para a cópula, com o cheiro característico, o macho vai lá e monta. No ser humano, não é assim. Cada um quer uma coisa diferente no sexo. O sexual para a psicanálise é a grande complicação. E o que resolve? Cada um sendo o que é. Em psicanálise, nem separamos pessoas em grupos: heterossexuais, homossexuais, bissexuais, etc. Cada um de nós, humanos, tem uma sexualidade. E o mundo está se atinando para esta singularidade.
Em um artigo seu, A Inteligência do Coração, a senhora defende o ponto de vista de uma lógica racional no emocional. O que é ela exatamente?
O que chamamos de inconsciente é, em muitos casos, essa “inteligência do coração”. Há algo que funciona em você que não é racional. No século 21 estamos em um segundo humanismo. O primeiro foi no século 18, que colocou o homem em lugar da proeminência para além de Deus, que passou a não ser mais a referência no sentido da razão. Coisas como “vamos discutir a relação?” nos mostram que as pessoas estão tentando resolver seus problemas discutindo racionalmente, sem perceber que há outras maneiras de encaminhar conflitos em uma relação amorosa. O racional muitas vezes nos embanana. É comum dormimos e acordamos com a solução para um problema, sem saber. Isso quer dizer que alguma coisa aconteceu inconscientemente que me ajudou a resolvê-lo. É por esse “eu sabia” é que temos passado por cima.
É a intuição?
Eu diria que em alguns casos é sim. Muitas vezes a gente não escuta essa voz por medo das consequências. A marca para identificarmos isso que “foi dito pelo coração” é aquilo que o leva a um bem-estar com você mesmo. Embora a gente seja especialista em se enganar – já que se curva à neurose, ao medo e à culpa e responsabiliza “o coração” – “escutá-lo” é o que vai levar a uma paz interna.
A senhora afirma que é o desejo que dá conta do recado de saber de nós mesmos. A questão é ter a coragem de ouvi-lo. Atendê-lo é sempre a solução?
Não diria atendê-lo, mas fazer alguma coisa com ele. O desejo é algo da nossa singularidade, do nosso jeito de ser. Mas atendê-lo sempre pode ser um pouco demais. Nós vivemos em um mundo coletivo, que de certa forma se opõe ao singular. Mas uma das mudanças nesse mundo hipermoderno é que o coletivo não é totalmente inimigo do singular. A sociedade e a cultura estão se singularizando cada vez mais. Olhe que bonito: hoje se duas homossexuais, com filhos e tudo mais, se mudarem para o lado da minha casa, vai depender delas e não da sexualidade delas se relacionarem conosco. Quer dizer, a sexualidade não mais interfere tanto nas relações. Eu diria que estamos em um mundo que nos permite uma possibilidade maior de ser feliz.
Mas a senhora também afirma que “a felicidade não é para os covardes”. Por quê?
A gente denomina singularidade, em psicanálise, o que às vezes é visto como esquisitice. Lacan chega a denominá-la de “nossas besteiras”. Ao assumir um desejo, no sentido de mostrá-lo, vivê-lo, construí-lo, você está assumindo uma dessas suas besteiras. Muitos vão bater palmas e outros vão criticá-lo, mas de qualquer maneira você está colocando a sua diferença no mundo. É não fazer sempre igual à regra. Antes isso era intolerável, porque, se eu fizesse fora da regra, o sofrimento era tão grande que não valia a pena sustentar o desejo. Então, quando falo que a felicidade não é para o covardes, digo que, para sustentar seu desejo, sua “esquisitice”, você pode ter de se submeter à desaprovação. Geralmente quando você faz algo somente para ser aprovado, não é feliz.
“O ser humano foi se individualizando. Mas não é individualismo no sentido egoístico. É que estamos cada vez mais responsáveis por nossas vidas. Mas isso aumenta a angústia”
Bom dia! Gostaria de rever o texto do diva do popular “uti com coração”